A Netflix e a empatia imperialista norte-americana

"A Netflix revolucionou a forma de narrativa seria, mas suas produções fílmicas legitimam as intervenção americana em outros países"

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Escrito en OPINIÃO el

A Netflix revolucionou a forma de narrativa seriada ao possibilitar a distribuição binge-publishing de seus conteúdos originais, estimulando o binge-watching (maratonas em vídeo).[1] Contudo, em relação às suas produções fílmicas, uma marca permanece pujante: a legitimação da intervenção americana em diversos países do mundo.

Os filmes do gênero ação, no último ano, trazem esta característica. Nesta oportunidade, observaremos quatro: Mar Vermelho (dirigido por Gideon Raff), Esquadrão 6 (Michael Bay), Resgate (Sam Hargrave) e Old Guard (Gina Prince-Bythewood).

É evidente que existe o cosmopolitismo pop que, de acordo com Henry Jenkins, é o consumo e a apropriação de elementos da cultura pop norte-americana por outras nações.[2] As pessoas produzem a partir do que recebem.

Mas o próprio autor, em conjunto com Joshua Green e Sam Ford, concorda com Jaime Nasser que afirma que os EUA temiam “o surgimento de modelos socialistas de indústrias nacionais de mídia de massa, após a queda da Alemanha nazista e a ascensão do comunismo", por isso investiram em um “modelo comercial de radiodifusão na América Latina”.[3] O foco foram as telenovelas de produção estadunidense. Esse projeto tornou os latinos tão apaixonados por novelas que se tornarem primorosos produtores do gênero.

As indústrias cinematográficas de várias partes da Europa tiveram que promover estratégias defensivas para se protegerem desta “forma particular de imperialismo cultural", como explica Fredric Jameson. “Os Estados Unidos fizeram um enorme esforço, desde o fim da Segunda Guerra Mundial, para assegurar a dominação de seus filmes em mercados estrangeiros – isso foi conseguido, por via política, através da inclusão de cláusulas específicas em tratados e pacotes de ajuda econômica".[4]

E muitos celebram esse domínio imperialista de Hollywood. Em 2006, o cineasta George Lucas “destacou que os Estados Unidos são um país provinciano que invadiu o mundo por meio de Hollywood. ‘Desde o início do cinema’, explicou Lucas, ‘Hollywood influencia enormemente o resto do mundo'".[5]

Mas os conteúdos dos filmes alteraram-se. Não retratam mais apenas o homem branco como nos mostra Douglas Kellner: "Duro de matar é um exemplo de um ciclo de fantasias masculinas de compensação que correspondeu à emergência do feminismo e da reação masculina conservadora que recusava compartilhar o poder com as mulheres, resistindo às ideias feministas. Uma série de espetáculos ideológicos masculinistas em que entrelavam alguns ultramachos como Sylvester Stallone, Arnold Schwarzenegger e Bruce Willis apresentavam super-heróis masculinos como solução necessária para os problemas da sociedade, promovendo, assim, uma ideologia da supremacia masculina".[6]

Esse tempo já passou. Houve uma reformulação nas maneiras de atuação do imperialismo cultural. Entendemos que a principal forma de legitimação da intervenção americana representada nestes filmes é a empatia. Este sentimento é gerenciado no discurso fílmico como uma estratégia persuasiva para tocar o telespectador. Trata-se de uma técnica retórica reconhecida desde a Antiguidade. Christian Plantin destaca que “o orador deve se colocar em estado de empatia com seu público; deve sentir/simular para estimular". Em seguida cita o famoso orador romano, Fábio Quintiliano, que afirma que para aumentar a emoção, no processo persuasivo, é preciso selecionar figuras que se baseiam na simulação, “pois, fingimos a cólera, a felicidade, o temor, o desprezo, a indignação, o desejo e outros sentimentos semelhantes".[7]

O primeiro filme, Mar Vermelho, conta-se a história de um grupo de judeus liderados por Ari Levinson (Chris Evans), um israelense criado nos EUA, que promove missões no limiar da década de 1980 para libertar etíopes judeus refugiados. A relação de empatia é bem óbvia. O homem branco, por ser judeu, compartilha do sofrimento dos seus parceiros de religião que são massacrados pelos governos ditatoriais da África.

Apresentando a atuação intervencionista do norte-americano por meio do sentimento de empatia, a interpretação é conduzida para uma conclusão positiva. O cinema não quer mais atuar em favor do agir americano nas sociedades e políticas das outras nações por meio da superioridade bélica, como fazia com os filmes do Rambo, mas pela sensibilidade.

Esse fenômeno permite até mesmo que mulheres negras tornem-se protagonistas, como veremos no filme Old Guard.

Os filmes dão a entender que onde houver sofrimento humano, injustiça, abuso de poder, os norte-americanos se compadecerão com a causa da liberdade.

O filme Esquadrão 6 revela esse aspecto descaradamente. Um milionário resolveu que deveria combater todos os governos autoritários do mundo. Critica até mesmo o governo americano por este não fazer nada sobre o assunto, ou seja, critica (ao mesmo tempo que se forja) a suposta hipótese de não-intervenção.

Liderados por este milionário que se intitula como Um, interpretado por Ryan Reynolds (cada membro do esquadrão é denominado por um número), vão até o Quirguistão para tirar um tirano do poder e colocar outro membro da família (o irmão), simpático às causas democráticas. Todos atuam gratuitamente, arriscam suas vidas para salvar o povo do Quirguistão das garras da injustiça.

O sentimento de empatia é ainda mais claro no filme Resgate, protagonizado por Chris Hemsworth. Mesmo depois de saber que sua missão de resgatar um menino indiano, que foi sequestrado por uma máfia de Bangladesh, não seria paga, decide proteger o rapaz. A empatia se dá pelo fato de Tyler Rake ter perdido um filho de 6 anos, e não queria “perder” mais um garoto. Ele via seu filho no menino indefeso.

Por conta dessa emoção, ele enfrenta praticamente sozinho a polícia e a máfia (que no filme são aliados) para salvar o jovem rapaz.

Por último, temos o filme recém-estreado na plataforma de streaming: Old Guard. O filme conta a história de quatro imortais que desde quando descobriram sua habilidade sobrenatural buscam fazer boas ações e “salvar" a humanidade.

Três dos “guardiões” são provenientes de uma era em que não havia o conceito moderno de nação, inclusive a protagonista Andy (Charlize Theron). Um deles é francês e remete às guerras napoleônicas. Mas, no decorrer da trama, descobre-se sua traição. Antes de se identificar a farsa do francês, os heróis haviam encontrado a quinta guardiã, Nile Freeman (Kike Layne), uma soldada do exército americano em atuação no Afeganistão.

Uma empresa (a vilã do filme) quer sequestrar os guardiães para promover pesquisas científicas e descobrir a fórmula da imortalidade. Todos são pegos, menos a guardiã americana que salva todos após entender a causa dos guardiões: proteger a humanidade gratuitamente.

Freeman é (com a traição e saída do francês) a única a representar um país, uma nacionalidade, e não poderia ser outra senão a estadunidense. Enfim, seria necessário ter um americano interventor, o guardião mais poderoso, a mulher que irá substituir a líder, Andy, que perdeu seu poder de imortalidade.

Não importa se o protagonista é judeu, milionário, mercenário ou uma mulher negra (ou um casal homoafetivo que compõe o grupo dos guardiões em Old Guard), a ideia de intervenção norte-americana mundo afora está presente em todos os filmes. Por meio da empatia representada nestas produções, forja-se a ideia de que a intervenção ocidental, onde quer que seja. Não há interesse econômico ou político, tudo é uma questão de se pôr no lugar do outro e impor a solução estadunidense para os problemas.

Na fórmula bondosa de se colocar no lugar do outro vem a ideia de fazer pelo outro o que se julga certo. Não haveria problema nisto, mas a intervenção americana não se dá assim na vida real. Na maioria dos casos ela se dá por meio de ataques de drones que bombardeiam vilarejos atingindo inocentes. As intervenções também se dão por questões geopolíticas que revelam conflitos entre interesses russos e chineses.

Há indícios de intervenção americana no golpe de 2016 e nos ataques à Venezuela, inclusive promovendo embargos econômicos desencadeando na miséria da população venezuelana. Tudo isso está bem distante do sentimento de empatia que norteia as produções originais da Netflix que conquistas milhões de assinantes espalhados pelo globo a cada ano.

Em 1917 (ano da Revolução Russa) os estúdios de Hollywood convenceram o governo federal dos EUA de que os filmes seriam fundamentais para vender a imagem do país para o mundo. O presidente Woodrow Wilson chegou a concluir que o cinema havia alcançado “a categoria de mais alto meio de disseminação da inteligência pública [e] presta significativamente para a apresentação dos planos e propósitos do país”.[8] Parece que a Netflix vem realizando muito bem este projeto.


[1] Sobre este aspecto vale a leitura da dissertação de Angela Miguel Corrêa. Séries Originais da Netflix: alterações na estrutura narrativa no contexto do binge-publishing. São Bernardo do Campo: UMSP, 2019.

[2] JENKINS, H. et all. Cultura da conexão. São Paulo: Aleph, 2014, p. 333.

[3] Id, p. 341.

[4] JAMESON, F. A cultura do dinheiro. Petrópolis/RJ: Vozes, 2001, p. 23.

[5] WASKO, J. Introdução. MELEIRO, A. Cinema no mundo. São Paulo: Escrituras, 2007, p. 20.

[6] KELLNER, D. A cultura da mídia. Bauru, Educa, 2001, p. 58

[7] PLANTIN, C. As razões das emoções. MENDES, E. e MACHADO, I. L. (orgs.). As emoções no discurso. V. 2. Campinas, SP: Mercado das Letras, 2010, p. 65.

[8] EPSTEIN, E. J. O grande filme: dinheiro e poder em Hollywood. São Paulo: Summus, 2008. P. 93.

*Este artigo não representa, necessariamente, a opinião da Fórum