"Foi-se a chibata e implantou-se a lei / Ambas sob a tutela das mesmas mãos / Mãos de senhores de engenho / Sinhozinho, não me toque! / Mesmo lavando a minh'alma as marcas não sairão".
A música de Preta Ferreira rasgou alto o silêncio na madrugada após a terça-feira nascida pra ser muda.
Quando as luzes se acenderam após a #blackouttuesday, um dia de protesto antirracismo pelo mundo em que quadrados pretos lotaram feeds, 'tava lá "o corpo estendido no chão'.
Como se não bastasse a violência contra João Pedro e Adriel, adolescentes negros, um assassinado pela polícia do Rio de Janeiro e o outro execrado por um racista em sua rede social de resenhas de livros, assistimos à queda do menino negro Miguel (5 anos) do nono andar, após ter sido colocado no elevador pela patroa de sua mãe, nesta quinta (4 de maio).
À luz da realidade pós-blackout, o racismo voltou ao seu lugar de sempre, sapateando sobre os corpos e as dores negras. Não apenas diminuindo o luto revoltante por Miguel, mas na indignação branca com a exposição da 'sinhá' pernambucana. Ou ainda no crime (de racismo) de dizer que racismo é "natural e instintivo" praticado por uma blogueira sem noção.
Mas tudo começa antes de um menino negro ir parar no chão, caído do nono andar. Começa antes de uma mulher branca, numa posição de poder, fazer uma mulher negra sair de casa pra servir sua família no meio de uma pandemia. A estrutura disso tudo é tão arraigada, tão feita pra normalizar determinadas atitudes e dissolvê-las no lugar-comum que pra enxergar esse buraco é preciso voltar algumas casas, ter disposição pra olhar pra coisas em nós que não vamos gostar de ver.
Mais que estampar um quadrado preto no feed, é hora da branquitude assumir a responsabilidade pelo crime que enterra todos os dias milhares de pessoas. Não dá mais pra se esconder atrás do "foi um erro", "foi um acidente" que moram no mesmo vale sombrio que "é brincadeira", "não tem diferença, é tudo raça humana", "esse não é meu lugar de fala" e outras muletas que camuflam a covardia branca.
Não é sobre uma "fatalidade", é sobre uma estrutura social que privilegia vidas brancas, ricas, em detrimento de outras, negras, pobres. E coroa crimes pelos quais seus criminosos não são punidos. "A vida de Miguel custou só R$ 20 mil", lembrou bem Mariana Janeiro.
Essa semana seria de lançamento deste blog. Mas não tem como, nestes tempos bicudos, ser sobre nós. Por isso vamos apenas cumprir nosso papel como rede ativista de criação consciente. Criar consciente, para nós, passa pelo posicionamento contrário a toda forma de violência contra a infância. Pela luta contra o racismo (esse mesmo que reproduz o cenário de Casa-Grande & Senzala e faz parecer tudo natural), o machismo, o fascismo, a xenofobia, a misoginia, a LGBTfobia, o preconceito contra a pessoa com deficiência e outras desumanidades.
Enquanto a sociedade reproduzir discursos como "foi um erro" e "somos todos iguais" sem olhar pros abismos que ainda teimam em nos separar injustamente, sentiremos a dor de não haver pontes suficientes pra salvar vidas como a de Miguel e de tantas outras crianças.