Com o aumento da escalda autoritária e o acirramento da crise política e institucional, mediante atos em defesa de uma intervenção militar e do fechamento do Congresso Nacional e do STF (Supremo Tribunal Federal), orquestrados pelo presidente da República Jair Bolsonaro, debate-se qual a estratégia mais adequada para frear um golpe militar e preservar o regime democrático. Frente ampla ou frente popular?
A ideia de uma frente ampla ganhou força neste final de semana, com o lançamento de alguns manifestos, especialmente o “Estamos Juntos”, tendo como primeiros signatários figuras de variadas matrizes políticas, excluindo, porém, os ex-presidentes Lula e Dilma, além de representações de movimentos sociais, sindicais e sociais mais ligados ao campo da esquerda e da classe trabalhadora e que têm resistido e denunciado nos últimos anos o ataque aos direitos e o desmonte das políticas sociais.
O manifesto apela para que a institucionalidade some forças para enfrentar a crise politica, o que louvamos, pois precisamos de uma ampla unidade para deter não só Bolsonaro, mas o seu desastroso governo como um todo, porém não menciona sequer o nome do presidente Jair Bolsonaro, muito menos prega o seu afastamento. Diz um trecho do manifesto: “Somos muitos, estamos juntos, e formamos uma frente ampla e diversa, suprapartidária, que valoriza a política, e trabalha para que a sociedade responda de maneira mais madura, consciente e eficaz aos crimes e desmandos de qualquer governo". Note que não se dirige diretamente ao governo Bolsonaro, mas qualquer governo, como se todos estivessem cometendo crimes.
Não se trata de nos opormos à necessidade de um movimento de caráter mais amplo para salvar o país de uma aventura totalitária e fascista, mas não se pode falar em amplitude excluindo atores importantes da vida política. Refiro-me ao PT e aos movimentos sociais que compõem as frentes Brasil Popular e Povo Sem Medo. Frente ampla não combina com exclusão ou isolamento de importantes segmentos da cena política brasileira, exceto aqueles que se quer combater.
Não negamos a necessidade da conformação de uma unidade ampla dos setores para frear o avanço do fascismo, mas tão somente para esse objetivo específico. Para tanto, nem é preciso uma estrutura orgânica, pois se trata de um movimento, como foram as Diretas Já. No entanto, não abrimos mão da tarefa urgente de construir uma frente popular de esquerda e progressista, que tenha o objetivo de liderar um movimento de massas que incida na derrubada do governo Bolsonaro e Mourão, e avance na construção de um programa democrático e popular com vistas a superar o capitalismo e abrir caminhos para o socialismo. Nessa frente, não tem espaço para conciliação de classes, não cabem nela os golpistas de ontem nem os chamados liberais democratas de hoje, pois esses segmentos são inimigos das classes trabalhadoras e responsáveis pela eleição de Bolsonaro. Estão irmanados na implantação da agenda ultra neoliberal em curso no país, retirando direitos e entregando recursos públicos e naturais para a burguesia. Mesmo assim, é importante essa união de forças em defesa da democracia e contra o autoritarismo. Ademais, estamos em campos opostos. Com visões de mundo e projetos políticos antagônicos.
Sabemos que o debate sobre frente ampla ou frente popular é motivo de divergência desde o tempo de Marx e Lênin. O 7º Congresso da Internacional Comunista (1935) aprovou a orientação de que todos os partidos comunistas deveriam construir frentes em aliança com a chamada burguesia progressista, tendo Trotsky denunciado tal posição como conciliação e inimiga de classe. Nessa polêmica fico com Trotsky, e como o tempo é de guerra, vamos nos concentrar no que é mais fundamental no atual momento: o combate ao capitalismo e ao fascismo. E para tal tarefa precisamos de uma frente popular, sem deixar de selar alianças pontuais para afastar Bolsonaro, o pior de todos os governos da história do país, superando negativamente até mesmo Tomé de Souza, o primeiro governador-geral do Brasil.
O tão propalado manifesto mencionado acima finaliza afirmando o seguinte: “Vamos juntos sonhar e fazer um Brasil que nos traga de volta a alegria e o orgulho de ser brasileiro”. Estamos de pleno acordo, todavia, para a concretização dessa assertiva precisamos combater o capitalismo e ao fascismo e com isso enfrentar os reais problemas do povo brasileiro.
A crise do coronavírus é humanitária e explicita a falência do sistema capitalista em escala global. Após décadas da queda do muro de Berlim, o mundo está muito mais desigual, com um desastre ambiental de ampla magnitude, tensionamentos geopolíticos crescentes, guerras, fome e miséria. A apropriação por meia dúzia de pessoas das riquezas produzidas pelas classes trabalhadoras em todo o mundo é a principal causa de nossas mazelas. Somente no Brasil, nos últimos anos, foram gastos mais de R$ 1 trilhão com serviços da dívida pública, e neste momento temos cerca de R$ 4 trilhões reservados apenas para atender aos interesses do rentismo. Isso significa que metade das riquezas produzidas no país se transforma em lucro de poucos bilionários pelo mundo.
Como já dissemos na campanha pela Taxação das Grandes Fortunas, um estudo da Oxfam aponta que apenas seis pessoas no Brasil acumulam património igual a cem milhões de brasileiros e brasileiras. Ou seja, metade da nossa população tem, somado, o mesmo que os seis bilionários mais ricos. Além disso, a parcela um por cento mais rica da população concentra mais de vinte e oito por cento da renda. Isso não é um mero acaso, é a lógica própria do sistema capitalista, e tem se reproduzido em todo o mundo.
Como consequência, vemos a pandemia do coronavírus expressando a desigualdade social no número de mortes, que se concentram nas camadas mais pobres da população, sem acesso à moradia, água e saneamento básico. A COVID-19 reproduz a lógica já observada das consequências da desigualdade nas cidades. Neste ano, por exemplo, tivemos muitas mortes relacionadas à alta incidência de chuvas no verão, em decorrência dos alagamentos e deslizamentos de terra. Só em Minas Gerais, em quinze dias entre janeiro e fevereiro, 60 pessoas morreram vítimas das chuvas. É uma triste realidade que se repete em todo o país ano após ano, e que decorre do modelo privatista e especulativo que domina a gestão urbana no capitalismo. As mortes causadas pela COVID-19, concentradas nos bairros mais pobres, obedecem à mesma lógica de um urbanismo voltado apenas para a especulação imobiliária, uma saúde privatizada e todo um sistema organizado para concentrar renda.
Nesse contexto, não é à toa que surgem movimentos neofascistas em todo o mundo. Essa é mais uma forma política de manter o sistema capitalista em pleno funcionamento, com uma retórica vazia de atenção ao povo combinada com uma política concreta que aprofunda as desigualdades. Soma-se a isso a escalada autoritária, mecanismo das classes dominantes para impor uma aparente ordem social em meio ao crescimento da miséria.
Por isso, o combate ao capitalismo, ao fascismo e ao governo Bolsonaro perfaz uma mesma luta. Para enfrentar Bolsonaro, precisamos ir à raiz dos nossos problemas, apontar as reformas populares estruturais como única possibilidade de superar nossa crise econômica e social. Precisamos de reforma urbana que democratize a terra na cidade, de reforma agrária que democratize a terra no campo e de uma nova organização econômica, que garanta os frutos do trabalho a quem trabalha.
Essa é, portanto, uma tarefa revolucionária, e devemos nos organizar desde já para isso. Apontar o socialismo como horizonte de luta voltou à ordem do dia, e esse deve ser um compromisso de todas as organizações, movimentos e frentes que de fato estejam comprometidos com o bem-estar de trabalhadores e trabalhadoras do Brasil e do mundo, pois está provado que o capitalismo não é solução para resolver os problemas da humanidade. Seguiremos nosso caminho de luta contra o capitalismo, o fascismo, o racismo, na defesa dos interesses da classe trabalhadora. Ao combate, sem trégua!
* Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Fórum