É verdade que a história republicana viu uma extraordinária desinformação ou deformação do conhecimento sócio-histórico por parte das cúpulas militares. O próprio fenômeno da proclamação em novembro de 1889 suscitou o comentário brilhante do senador do império Aristides Lobo, segundo o qual o povo assistiu “atônito e bestializado” aquela movimentação de tropas entendida como o início da República no Brasil.
Há uma exceção: o genial Euclides da Cunha, que ajudou a construir nossas leituras sinceras do Brasil republicano. Euclides apreendeu sentidos do Brasil profundo e aprendeu a repensá-los, numa espécie de conversão que raros homens são capazes de realizar. Veja-se um dos fenômenos que melhor explicam o Brasil em sua totalidade: Canudos, a terra, os homens e a luta. Ali se confrontaram as mentiras das elites civis e militares da República e a verdade da gente sofrida e brava do sertão. Guimarães Rosa iria retomar tudo em Grande Sertão: Veredas e mostrar que o sertão é o mundo, o que inclui, por suposto, o Brasil e a verdade de sua gente.
No entanto, a triste regra se sobressai. A deformação no olhar sobre a diversidade e as desigualdades brasileiras foi tão longe que somos obrigados a suportar – até quando? – os discursos de dois homens de origem militar, agora encastelados ao lado daquele que o povo chama Capitão Corona a dizer que “Precisa acabar essa história de que Forças Armadas estão metidas na política” e “não estica a corda”, em face de murmúrios de golpe. Trata-se dos senhores Mourão e Ramos.
Nenhum lugar de formação, em qualquer área especializada, poderia prescindir de estudos de linguagem. Mas parece que os dois militares palacianos passaram longe disso. Senão, vejamos. O primeiro problema linguístico (e por isso político) leva a perguntar como acabar com a história, isto é, deixar de produzir comunicação sobre a presença militar na política; do mesmo modo, o que é esticar a corda!?
Ora, a corda esticada contra a democracia brasileira teve início em primeiro de janeiro de 2019, e o pelotão de puxadores tem nome: Jair, Flávio, Eduardo e Carlos Bolsonaro. A corda se retesa nas redes comunicativas, no plantão bisonho diante do Planalto, nas salas do entorno presidencial e sua rede de computadores, nas manifestações insanas sob pandemia e nos documentos oficiais produzidos, que não são engolidos pela população e nem mesmo pelos legisladores e membros do judiciário. Porém, quanto mais é negado o clã radicado na Barra da Tijuca, mais a corda é esticada por parte deles. Há um ano e meio o espetáculo dantesco dessa família já ultrapassou em muito as tranqueiras da Casa da Dinda, do senhor Collor de Mello e seu patriarca ainda não foi cassado por obra do toma lá, dá cá da Velha Política.
O senhor Ramos, se desejar ser entendido, deve alterar seu discurso, pois seu enunciado se realiza em lugares trocados. As oposições reagiram até lentamente para botar as mãos no outro lado da corda, a buscar um remédio para a puxada bolsonarista rumo ao golpe e, em consequência, ao abismo. Qualquer bom historiador ou sociólogo sabe que em novo quadro internacional de relações políticas, com sociedade global mais empobrecida e mais consciente, golpe tem o mesmo significado que abismo social. Quanto aos quatro infantes, nada mais se pode esperar deles, exceto o esquecimento da história.
Além de tudo isso, o senhor Ramos ignora os atos de regência e construção semântica do verbo esticar. Para ele, “os outros” esticam a corda, o que é leviano. Ou a corda está amarrada a fim de esticá-la, ou há duas pontas em confronto. Empregado no Palácio, o senhor Ramos se referiu somente a uma ponta, como sempre fez. Não entendeu que a democracia é um processo de disputa em que as cordas nunca ficam “bambas” e que os contendores “empatam” e cedem ao debate público. Mas esse não e o caso do Brasil atual. O governo Bolsonaro acabou, simbolicamente, em 22 de abril p.p. e não há quem o recupere. Como diria José Lins do Rego, está em fogo morto e é nessas condições que tenta o golpe das cordas estiradas. Prova disso é que o comandante da corda esticada passou a ser o Weintraub, a pior figura que o MEC conheceu desde a sua instituição em 14 de novembro de 1930.
O discurso canhestro de “acabar com a história...”, do senhor vice-presidente, implica um desconhecimento total das operações da linguagem. Imagina esse senhor, que se deu a escrever textos dúbios e equívocos na imprensa, que uma espécie de decreto, ou grito, acaba com histórias... Ora, senhor vice, quando uma significação se robustece na história política, seu desfazimento requer estratégias inequívocas e certeiras. Com o clã bolsonarista a esticar a corda golpista até quase além do limite, essa imensidão de novos funcionários militares do governo preenche significados da caserna e contagia todo o aparato militar; destarte, há fortes emissões de sinais a sugerir que a força militar ativa também segue o capitão. O processo está, em linguagem corrente, contagiado.
Para alterar o discurso que o senhor vice quer acabar no grito, são requeridas mensagens que os altos funcionários militares não emitiram até agora: o texto e a fala inequívocas, que ninguém ainda ouviu ou leu. Idem, o desmantelamento das salas palacianas de computadores dirigidas pelo Carlos, membro do clã. Esperava-se tal esclarecimento do senhor Braga, pessoa de fala mais articulada; porém, essa expectativa também já se esvaiu, especialmente porque ninguém que participou da fatídica e pornográfica reunião de cúpula de 22 de abril teve voz para dar a ela um caminho republicano, entendida a República como conceito teórico. Aliás, o Sr. Braga fez o Brasil rir quando disse que o “comunicador” Carlos ia ao Palácio para visitar o pai. Por favor, senhor, somos trouxas?
Enquanto isso não ocorre, os senhores militares do primeiro escalão palaciano falam à-toa, pois não são capazes de construir mensagens portadoras de novas significações. E la nave và. Nosso lindo país está mergulhado no terceiro círculo de Dante Alighieri. Nenhum golpe, de qualquer tipo e forma, escapa desse julgamento dramático. Exceto a plena democracia, que jamais se fez no grito ou no aviso prévio.
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