“Conteúdo devastador!”. Seria a bala de prata para as pretensões de Bolsonaro. Finalmente o STF liberou o “fatídico” vídeo da reunião ministerial. Mas a decepção foi diretamente proporcional às expectativas criadas em relação à divulgação. Nesse momento, a grande mídia faz esforço hercúleo para manter a narrativa das “provas” do ex-ministro Sérgio Moro. E manter Paulo Guedes afastado da “ala ideológica”, poupando-o (e também a agenda neoliberal) da contabilidade dos palavrões e xingamentos. Virou uma peça de propaganda do “Bolsonaro-raiz”. Porém, o tiro de festim do vídeo acertou naquilo que não mirou: revelou a aliança oculta entre o “Brasil Profundo” e o “Brasil Renitente” (a elite obstinada em manter a ordem “Casa Grande e Senzala”) com o apoio da grande mídia. Graças à guerra híbrida, o “Brasil Profundo” de seitas ao estilo Jim Jones e David Koresh ganharam tradução política e chegaram ao Estado. Lances de guerra criptografada como esse vídeo são jogadas do “Brasil Renitente” - com um roteiro de teledramaturgia traçado pela grande mídia, mantém o distinto público eletrizado pela montanha russa dos acontecimentos.
Nos últimos dias, trechos do vídeo da reunião ministerial eram vazados enquanto a mídia batia bumbo: “vídeo confirma integralmente as denúncias de Moro”; “extrema relevância”; “vídeo pode comprometer Bolsonaro”; “o vídeo que pode resultar em impeachment”; “conteúdo devastador” e assim por diante em crescentes superlativos.
Suspense! O ministro Celso de Mello vai liberar o vídeo na integralidade ou apenas partes? Na tarde de sexta-feira, apresentadores e analistas dos canais de notícias CNN e Globo News faziam uma espécie de vigília e não se continham consumidos pela ansiedade, contando os minutos para o STF liberar o “fatídico” vídeo.
Pedida pela defesa do ex-ministro Sérgio Moro como prova da interferência do presidente na Polícia Federal para proteger seu clã e apaniguados, finalmente vídeo e transcrição foram liberados quase na íntegra no final daquela tarde... e a montanha pariu um rato!
A decepção foi diretamente proporcional às expectativas criadas em relação à divulgação. Sobre a questão central do vídeo (Bolsonaro cometeu crime?), tudo acabou se diluindo numa guerra semântica de versões.
De um lado, o empenho hercúleo dos jornalistas, principalmente da Globo, em sustentar a narrativa de Moro: agora, as imagens do vídeo seriam apenas a primeira peça de uma investigação mais profunda que se inicia... de bala de prata virou primeiro capítulo de uma novela. Nunca se viu tanto usar a palavra “contexto” para dar sentido as expressões de Bolsonaro como “segurança minha lá do Rio”.
E do outro, aqueles que avaliaram o conteúdo como inofensivo e até benéfico para o presidente: ao final, o vídeo foi uma peça de propaganda: mostrou o “Bolsonaro-raiz” em flor – linguagem tosca, recheada de palavrões e xingamentos - o JN ocupou parte do seu tempo para contar o número: 37 palavrões, sendo 29 só do presidente e oito dos ministros.
Freak show
Nenhuma surpresa. Até aqui, o vídeo apenas confirmou o “ethos” da fauna que ocupa o Governo: Paulo Guedes arrogante dizendo que leu Keynes antes de ser traduzido e gritando que “tem que privatizar essa porra aí!”; o raivoso Weintraub ameaçando prender vagabundos, “prá começar o STF!”; Bolsonaro chamando governadores de “bosta” e “estrume”; enquanto Damares Alves histericamente gritava “VALORES!, VALORES!” – freak show total.
Tudo isso apenas soou como música aos ouvidos do núcleo duro dos bolsomínios. Só faltou Bolsonaro ter um porrete na mão para bater violentamente na mesa, como fazia o finado jornalista policial e deputado estadual Luiz Carlos Alborghetti: nos anos 1990, no programa Cadeia Nacional, tinha na mão direita um porrete que usava para descontar sua raiva contra “corruptos, bandidos, políticos, criminosos dadores de bundas e governadores bundões” – destruía ao vivo qualquer objeto que estivesse à sua frente, principalmente a mesa.
Alborghetti era ainda uma voz folclórica do Brasil Profundo, que ainda não possuía uma tradução política. Política cuja hegemonia era ainda do Brasil Renitente: daquela elite que obstinadamente sempre tentou perpetuar os privilégios do passado escravagista da divisão Casa Grande e Senzala, mesmo com a modernização da agenda neoliberal que inseriu o País no capitalismo global.
Tradução política
Em outras palavras, as únicas provas que o vídeo nos ofereceu foram as de que o País é governado por aquela parte profunda na Nação que de forma inédita ganhou tradução política através da democracia formal: “sicofantas e teóricos, pessoas ideológicas, sem pragmatismo ou mesmo experiência prática em resolver problemas igualmente práticos da população... governar para a minoria, auxiliares agressivos e que não fazem o menor esforço para ampliar o apoio político”, como muito bem definiu o cientista político Alberto Carlos Almeida – clique aqui.
No passado, porções profundas de qualquer país, representadas por figuras emblemáticas como Alborghetti, sempre foram circunscritas a seitas ou pequenos grupos de recalcitrantes ou negacionistas que se isolavam da civilização em algum grupo religioso ou messiânico à espera do fim do mundo ou de alguma forma de justiça escatológica.
Por exemplo, Jim Jones ou David Koresh foram profetas que arrastaram seguidores para algum lugar perdido, respectivamente, nas Guianas (1978) ou no interior do Texas (1993), onde encontrariam a morte seja pelo suicídio em massa (no “Templo do Povo”, de Jim Jones) ou num incêndio – na seita do “Ramo Davidiano”, de Koresh.
A Primavera do Brasil Profundo
O problema é que a guerra híbrida que produziu a “primavera” política necessária para apear do poder os governos trabalhistas abriu a janela de oportunidades inédita para, finalmente, esse Brasil Profundo ganhar tradução política.
Desde 2011 esse Cinegnose já vinha alertando para a escalada do Brasil Profundo como movimento que, pouco a pouco, ganhava significado político: ciclistas atropelados intencionalmente em Porto Alegre, bullying digital e redes sociais invadidas por mensagens de ódio de grupos como o “Orgulho Paulista”, organizadores de acampamentos pró-impeachment em 2016 na Avenida Paulista acusados de estelionato e assédio sexual - pequenos escroques, acadêmicos e intelectuais obscuros, músicos que fizeram sucesso no passado e que foram esquecidos, ex-anônimos que confundiam militância profissional com fundamentalismo religioso e oportunistas de toda sorte – clique aqui e aqui.
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