A cidade de Manaus tem atraído a atenção nos últimos dias pelo alto número de casos e mortes por Covid-19. Ainda assim, há fortes indícios de que o número de casos e de mortes seria bem maior do que os números oficiais indicam. Os dados de registro civil apontam que o número total de mortes na cidade de Manaus em abril de 2020 é 5 vezes maior que a média de mortes no mesmo mês nos 5 anos anteriores.
Em 28 de abril de 2020, 5.017 pessoas já morreram no Brasil por Covid-19. Para aqueles que diziam que essa doença era só uma ‘gripezinha’, os dados de diferentes fontes parecem indicar o contrário. Estes números já são bem graves e inéditos na história recente do país. É grave percebermos que provavelmente os números oficiais de mortes e casos não representam o que de fato, está acontecendo. Semelhante ao que vem ocorrendo em outros países [1][2], há fortes indícios de que existe uma subnotificação de casos e, por consequência, de mortes por Covid-19 no Brasil.
Através dos dados oficiais do Datasus sobre o número de óbitos por doenças respiratórias foi criado um Painel de Doenças Respiratórias que permite fazer análises exploratórias sobre dados de mortes por estas doenças no Brasil entre 2014 e 2017. Esses dados inspiraram algumas análises logo abaixo que comparam o número de mortes pela Covid-19 com outras doenças.
Utilizando técnicas de análise estatística descobrimos que o número de mortes acumuladas no período disponível no Painel de Doenças Respiratórias forma quatro grupos de doenças. E um dos grupos, a das doenças mais mortais, coincide justamente com as doenças que mataram mais de 5000 pessoas nos cinco anos da série temporal. A Figura 1 mostra esses grupos.
[caption id="attachment_219050" align="aligncenter" width="856"] Figura 1: Quantidade de doenças e faixas de óbitos acumulados entre 2014 e 2018[/caption]Pela Figura 1 percebemos que a faixa de 10 a 99 mortos tem o mesmo número de doenças da faixa que vem em seguida. Vale ressaltar no entanto que a faixa de 10 a 99 mortos é mais concentrada pelo fato de se tratar de um intervalo menor. Mas o que chama a atenção mesmo é a faixa de 5000 mortos ou mais. Observa-se que menos de 20 doenças se encaixam aí.
Aparentemente, as doenças respiratórias mais letais estão acima desse patamar de mortalidade, 5 mil mortos para o acumulado dos cinco anos analisados. Mostramos uma lista mais detalhada dessas doenças e suas mortalidades na Figura 2.
[caption id="attachment_218744" align="aligncenter" width="860"] Figura 2: Mortalidade das doenças respiratórias mais letais[/caption]Das 195 doenças respiratórias que causaram óbitos no Brasil, apenas essas 17 representadas na Figura 2 tiveram em cinco anos de estatísticas valores superiores a 5 mil mortos. A Covid-19 em pouco mais de dois meses já apresenta volume de mortes compatíveis com cinco anos de acúmulo das doenças respiratórias mais letais no Brasil.
A Figura 3 mostra o desmembramento das doenças por cada ano da série analisada. [caption id="attachment_218745" align="aligncenter" width="859"] Figura 3: Quantidade de mortos por ano vítimas das principais doenças respiratórias[/caption]
Os 5 mil mortos em apenas dois meses de Covid-19 no país, só não é uma estatística maior do que a apresentada pelas cinco doenças mais letais para cada ano da série temporal analisada.
Podemos ver ainda que a causa mais comum de óbitos por doenças respiratórias é a pneumonia NE. Devemos lembrar que os sintomas de Covid-19 guardam muita semelhança com os de pneumonia. Isso pode significar que, em 2020, os números do coronavírus podem ser categorizados como pneumonia. Vamos aos dados deste ano então para tentar entender melhor o fenômeno da subnotificação de óbitos.
A subnotificação e a tragédia de Manaus
A seguir vamos demonstrar um caminho para identificarmos as subnotificações. Propomos comparar dados de óbitos em anos anteriores com os dados de óbitos deste ano em uma mesma região do Brasil, independentemente da razão das mortes. Usamos dados disponíveis no portal da transparência e que atualmente cobrem os anos de 2015 a 2020. Os dados estão agregados a nível espacial de cidade e estado, e nível temporal de mês. Significa que é possível, por exemplo, saber quantas pessoas morreram no mês de março de 2020 em qualquer cidade ou estado do Brasil.
Para testar a hipótese de que há subnotificação, analisamos primeiro os números para o Amazonas, estado brasileiro que enfrenta uma das situações mais graves nessa crise. Mais particularmente a capital Manaus.
Segundo os dados oficiais liberados pela Secretaria de Saúde do Amazonas e organizados pelo projeto Brasil.io, Até o dia 29 de abril de 2020 houve 246 mortes causadas por Covid-19 em Manaus, conforme mostra a Figura 4 abaixo. [caption id="attachment_218746" align="aligncenter" width="1400"] Figura 4. Evolução do número oficial de mortos por Covid-19 em Manaus, segundo dados do Ministério da Saúde[/caption]
Entretanto, recentemente foi notícia em todos os canais as dificuldades que a administração municipal de Manaus enfrenta para sepultamento nos últimos dias. É verdade que 246 óbitos em 2 meses de crise de Covid-19 são muitas mortes, mas não deveria ser isso a causar colapso no sistema funerário de uma cidade com mais de 2 milhões de habitantes como Manaus. Indício de que estes 246 óbitos não representam a realidade.
Observamos o portal da transparência e buscando por óbitos em Manaus no mês de março, encontramos que houve 905 mortes em março de 2020. Quase o triplo da média dos cinco últimos anos: em 2015 houve 148 mortes, em 2016 houve 166, em 2017 houve 410 mortes, em 2018 houve 507, e em 2019, 402 mortes (ver Figura 5, abaixo, ilustrando essa comparação). [caption id="attachment_218747" align="aligncenter" width="1400"] Figura 5. Número oficial de óbitos nos meses de Março de 2015–2020 em Manaus, segundo o registro civil [/caption]
Quase o triplo do número médio de mortes no mês de março em 2020, e mais que o dobro do ano anterior. Esse não é um padrão normal. Há uma anomalia no número de mortes em Manaus, e, mesmo sem fazer os testes, não parece absurdo afirmar que a epidemia por Covid-19 é a explicação.
E o cenário catastrófico mostrado nos dados do mês de março, fica ainda mais trágico quando observamos os dados ainda inacabados do mês de abril. Houve nada menos que 1676 mortes registradas em Manaus até a presente data em abril de 2020. Quase cinco vezes mais que a média dos cinco últimos anos; quase o triplo do número recorde de mortes registrado em abril de 2019: em 2015 houve 104 mortes, em 2016 houve 417, em 2017 houve 157 mortes, em 2018, 266, e em 2019, 591 mortes. [caption id="attachment_218748" align="aligncenter" width="1400"] Figura 6. Número oficial de óbitos nos meses de Abril de 2015–2020 em Manaus, segundo o registro civil [/caption]
São evidências fortíssimas que o já trágico cenário da Covid-19 segundo os dados oficiais, pode ser ainda pior. Se considerarmos que a diferença entre o número de mortes observado em março e abril de 2020 comparado com os anos anteriores deve-se principalmente à Covid-19, podemos sugerir que houve ao redor de 1,5 mil mortes por Covid-19 em Manaus até agora, um número sete vezes maior que o mostrado pelos dados oficiais. Se extrapolarmos isso para todo o Brasil, equivaleria dizer que já há 35 mil mortes por Covid-19 no país, o que nos deixaria atrás apenas dos Estados Unidos no macabro ranking de mortes pela Covid-19 até então.
Fiquemos em casa! Deixem-nos ficar em casa!
Como de costume, dados e scripts usados para este texto podem ser encontrados em nosso github.
Sobre os autores
Charles Novaes de Santana — Cientista da computação, mestre e doutor em mudanças climáticas, com experiência no uso de técnicas de inteligência artificial e de aprendizado estatístico para responder perguntas interdisciplinares. É cofundador de DataSCOUT, apaixonado por fractais, redes complexas e por identificar padrões escondidos em amontoados de dados.
Tarssio Barreto —Estudante de doutorado do Programa de Engenharia Industrial da Universidade Federal da Bahia. Dedica o seu tempo ao aprendizado de máquina com particular interesse na interpretabilidade de modelos black box e qualquer desafio que lhe tire o sono!
Fernando Barbalho — Doutor em Administração pela UnB (2014). Pesquisa e implementa produtos para transparência no setor público brasileiro. Usa R nos finais de semana para investigar perguntas que fogem às finanças públicas.
Leonardo F. Nascimento — Doutor em sociologia pelo Instituto de Estudos Sociais e Políticos — IESP/UERJ (2013). Pesquisa temas relacionados à sociologia digital e aos métodos digitais de pesquisa. Atualmente é professor do Instituto de Ciência, Tecnologia e Inovação da UFBA.
Henrique Gomide — Professor na Universidade Federal de Viçosa. Mestre e doutor em Psicologia. É consultor pela UFV em ciência de dados e aprendizagem de máquinas. Tem como principais interesses a aplicação de técnicas quantitativas e inovação nas áreas de saúde e educação.