O Brasil precisa de um 25 de Abril para chamar de seu

Portugal oferece referências para enfrentarmos não apenas o coronavírus, mas o vírus do autoritarismo

Criança participa das comemorações do 25 de Abril, no ano de 2017, em Lisboa (Foto: Reprodução)
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É 2020. A pandemia de coronavírus impõe o distanciamento social. Portugal vive regras rígidas de confinamento e de restrição da circulação, cumpridas por ampla esmagadora maioria dos cidadãos, desde as primeiras contaminações na Europa. A geografia do território português lhe favorece, mas também há de ser reconhecer o bom planejamento e a atuação eficiente do governo, sem deixar de reservar críticas às cedências do Partido Socialista ao cânone econômico neoliberal nos últimos anos.

No entanto, foram a liderança e o sentido de unidade nacional no plano político, até mesmo na oposição, que se refletiram em unidade e civismo da sociedade, os aspectos decisivos para fazer de Portugal um exemplo de combate e prevenção. Jornais de Espanha, França, Alemanha, Bélgica e EUA descrevem o “milagre português” e seus baixos índices de contaminação. Portugal pode e deve ser uma referência, especialmente para o Brasil. E não apenas no enfrentamento do coronavírus.

É 2020. Mas é também 25 de abril de 2020. O 25 de Abril. O 25 de abril de 1974, da Revolução dos Cravos, que derrubou um regime ditatorial de cerca de meio século e garantiu o retorno da democracia. Anualmente, sem exceção, os portugueses comemoram este feriado nacional. Todos usam um cravo vermelho no peito, sessões solenes no Parlamento e passeatas em cidades por todo o país. Assim, a história e os ideais de abril passam dos mais velhos para os mais novos.

Não são esquecidos os detalhes, como a atitude da florista Celeste Caeiro. Sem o cigarro pedido pelo oficial revolucionário, ela ofertou um cravo vermelho, que ele prontamente colocou no cano de sua espingarda. Um gesto simples, que rapidamente se multiplicou e a flor passou a identificar as tropas aliadas. Mas também se marca a importância da liberdade e dos valores democráticos. O 25 de Abril é uma declaração inequívoca de que aquele período foi errado, horrível e não queremos ele de volta. Celebrar o 25 de Abril é celebrar a democracia.

O estado de emergência, decretado há mais de um mês, não suspende a democracia, destacam o presidente, Marcelo Rebelo de Sousa, e o primeiro-ministro, António Costa. Pelo contrário, a medida constitucional, embora suspenda parcialmente liberdades e garantias para acrescer mais poderes ao governo no combate à pandemia, é cuidadosamente supervisionada pela Assembleia da República e limitada no tempo. O coronavírus não facilitou uma transição para o autoritarismo, precipitada em países como a Hungria.

Portugal é, então, um exemplo de valorização da democracia. Especialmente porque soube fortalece-la nas condições deste ano, que poderiam enfraquece-la. No Parlamento, uma sessão reduzida, distanciada e higienizada, mas uma celebração, não menos. Escrevo este texto de cravo vermelho no peito a ouvir “Grândola, Vila Morena”, de Zeca Afonso, outro símbolo da revolução. Não é vitrola, nem YouTube. São meus vizinhos, nas janelas. Pelo país inteiro, um coro marcado pelas redes sociais e pela televisão para às 15h ainda não terminou.

Não se trata aqui de ignorar os crimes do colonialismo. Portugal cometeu sua cota de atrocidades no passado. Um império europeu branco ocidental que escravizou e explorou incontáveis territórios. E ainda há na sociedade portuguesa, por mais que se coloque para debaixo do tapete, racismo e xenofobia. Assim como ainda resistem alguns idiotas que digam “no tempo do Salazar é que era bom". Há que se melhorar, mas muito se aprendeu.

As mais recentes pesquisas indicam que Portugal, embora registre casos de discriminação, está entre os países mais tolerantes da União Europeia. O país foi o único a regularizar todos os imigrantes com pendências de documentação para que estes pudessem ter acesso ao sistema público de saúde durante a pandemia de coronavírus.

Portugal aprendeu, e aprendeu a partir das ideais de abril. As guerras nas colônias foram decisivas para desestabilizar o regime fundado por António Salazar. É, aliás sintomático, que só uma posição era combatida mais do que a defesa da democracia: a defesa da independência das colônias portuguesas na África. Para a ditadura de Portugal, ser pelo fim da colonização era pior do que ser de esquerda. E a defesa da exploração colonial era incompatível com a luta pela democracia.

É preocupante que o país já tenha o seu projeto de Jair Bolsonaro na Assembleia da República, a defender as asneiras de sempre, com as novas táticas do nosso tempo. No entanto, a extrema-direita conseguiu apenas este um deputado nas eleições nacionais e 0,5% dos votos dos portugueses nas eleições europeias. Pede vigilância. O fascismo era não menos do que uma ofensa impensável no país. Mas também demonstra resistência das instituições e sabedoria do povo, em uma Europa onde congêneres crescem a taxas preocupantes, vindo até a integrar alguns governos.

O Brasil precisa de um 25 de Abril para chamar de seu. Para combater não só a pandemia, mas o vírus do autoritarismo. Talvez porque nos faltou um rompimento mais contundente com a ditadura, como foi a Revolução dos Cravos, também nos falte essa declaração inequívoca e constante das celebrações do 25 de Abril.

O vírus do autoritarismo se propaga com rapidez singular entre os brasileiros. A aglomeração de células altamente contaminadas que hoje habita temporariamente o Palácio do Planalto desenhado pelo comunista Oscar Niemeyer, entre falas desconexas e discursos contra as instituições, é apenas a sua expressão mais evidente e não menos horrenda.

A parte mais perigosa deste câncer da democracia está, infelizmente, entranhada na sociedade brasileira e a devora sem o seu conhecimento. Essa SARS-COV-2 da ditadura retoma suas antigas conexões com grupos de mídia, empresários e elites burguesas, aproveita alguns corredores sombrios da política e descobriu nas redes sociais novas formas potencializadas de disseminação. Mas, principalmente, explora os medos, os preconceitos e as falhas de caráter de cada um de nós.

* Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum