Aldir Blanc disputa com a covid-19 a nossa esperança equilibrista

O autor de “O Bêbado e a Equilibrista”, que nos encheu de esperanças nos estertores da ditadura, ao descrever de maneira tão grandiosa a nossa fome de anistia e liberdade, luta pela vida. E nós, mais uma vez, com ele

Aldir Blanc (Foto: Divulgação)
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Enquanto escrevo este texto, Aldir Blanc está hospitalizado, provavelmente com a Covid-19, em estado grave. Seu parceiro de décadas, João Bosco, cancelou lançamento de seu álbum nas plataformas digitais em consideração ao estado de saúde do amigo. Sua filha, Isabel, envia informes através de sua conta do Twitter sobre o pai.

Aldir Blanc, no entanto, está vivo e, temos fé, sobreviverá. A saúde do poeta, neste momento, se torna um símbolo. O autor de “O Bêbado e a Equilibrista”, que nos encheu de esperanças nos estertores da ditadura, ao descrever de maneira tão grandiosa a nossa fome de anistia e liberdade, luta pela vida. E nós, mais uma vez, com ele.

Desde “Agnus Sei”, lançada no projeto “Disco de Bolso”, do lendário jornal carioca “O Pasquim”, em 1972, que trazia um artista consagrado e outro já famoso (O outro lado era “Águas de Março”, de Tom Jobim), Aldir nos fala como se fosse hoje, como se já não tivesse passado quase meio século:

Mas ovelha negra me desgarrei
O meu pastor não sabe que eu sei
Da arma oculta na sua mão
Meu profano amor eu prefiro assim
a nudez sem véus diante da Santa-Inquisição

A malandragem e a sabedoria de Aldir modelaram um outro Brasil desafiador, deu voz requintada aos subúrbios cariocas, babalorixás e pais de santos, navalhadas e corpos estendidos, onde camelôs e candidatos se aproveitam do enxame pra fechar seus negócios.

Ao lado de João Bosco, construiu e constrói ainda obras-primas lendárias. A saga do álbum “Tiro de Misericórdia” é um exemplo incomum e visionário das vítimas da violência urbana e, sobretudo, das execuções. Na canção de mesmo nome, apresenta o personagem de maneira impagável:

Ídolo de poeira, marafo e farelo,
Um deus de bermuda e pé-de-chinelo,
Imperador dos morro, reizinho nagô,
O corpo fechado por babalaôs

Após um épico de disputas entre orixás, o próprio herói da canção se proclama:

Irmãos, irmãs, irmãozinhos,
Nem tudo está consumado
A minha morte é só uma Ganga, Lumumba, Lorca, Jesus

No final das contas, carrega com todas as suas tintas a cena que se tornou comum nas comunidades brasileiras a partir de então e, ao que parece, desde sempre:

Grampearam o menino do corpo fechado
E barbarizaram com mais de cem tiros
Treze anos de vida sem misericórdia
E a misericórdia no último tiro

Mas Aldir também soube ser lírico, mas sempre com um talento enorme pra rir da vida. Fez um sem fim de canções sobre amores e vidas destroçadas, repletas de detalhes garimpados na observação do dia a dia das pessoas e suas mazelas. O band aid no calcanhar talvez seja o mais emblemático de todos.

E, quando completou meio século de vida, lançou “50 Anos”, uma de suas canções mais pessoais, surpreendentemente com o pianista Cristóvão Bastos e não com João. Nela, o poeta é, mais uma vez, fulminante:

Cinquenta anos são bodas de sangue
Casei com a inconstância e o prazer
Perdoo a todos, não peço desculpas
Foi isso que eu quis viver
Acolho o futuro de braços abertos
Citando Cartola:
- Eu fiz o que pude
Aos cinquenta anos
Insisto na juventude

Apesar de ser bem mais conhecido por suas canções, Aldir tem diversos livros publicados, com crônicas tão boas quanto suas canções. É um desses casos onde artista e obra, obra e personagem se misturam em efervescência infinita.

Ele está aqui, está entre nós, e ficará. Entrego as flores em vida para Aldir e o desafio, aqui e agora, para que se apresente mais uma vez, com a sua esperança equilibrista.