O povo se cala perante o pânico, enquanto Bolsonaro e a mídia escondem o verdadeiro culpado

Leia na coluna de Raphael Fagundes: "Precisamos nos libertar do medo oficial criado pela mídia, tanto o que sustenta o governo Bolsonaro quanto da manipulação que ela faz do medo desencadeado pelo coronavírus"

Escrito em Opinião el
Doutor em História Política na UERJ. Professor da rede municipal do Rio de Janeiro e de Itaguaí.
O povo se cala perante o pânico, enquanto Bolsonaro e a mídia escondem o verdadeiro culpado
Jair Bolsonaro - Foto: Isac Nóbrega/PR.

O filósofo Jean-Paul Sartre escreveu: “Aquele que não tem medo não é normal, isso nada tem a ver com a coragem". Mas, por longos anos, a Igreja tinha o monopólio do medo oficial e afirmava que “os lobos, o mar e as estrelas, as pestes, as penúrias e as guerras são menos temíveis do que o demônio e o pecado, e a morte do corpo menos do que a da alma".[1] Ou seja, todos estes males tinham um causador, o Satã.

Zygmunt Bauman acredita que este medo oficial, o qual digladiava com o riso subversivo observado por Bakhtin, perdeu-se, desmanchou-se no ar. “O indivíduo foi liberado para construir os seus próprios medos".[2] “É como se o poder tivesse escolhido o riso como seu abrigo mais seguro". Trata-se de um poder que gera gozo constante.

Mas o medo ainda gera prazer – e poder, consequentemente. Vivemos, inclusive, como destaca o sociólogo Barry Glassner, em uma “cultura do medo", na qual um tipo de medo é fabricado para esconder os problemas sérios, os causadores reais das mazelas sociais. Qualifica-se a criminalidade, o consumo de drogas, o “politicamente correto" como razões para a pobreza e para a degeneração moral para ocultarem a desigualdade social. Como diz Glassner, “tememos as coisas erradas".[3]

Como dizia Nixon, “as pessoas reagem ao medo, não ao amor". Foi isso que elegeu Bush, Trump e recentemente, no Brasil, Jair Bolsonaro. O medo fabricado pela mídia o qual culpabilizava o petismo, a esquerda, a corrupção etc., como as raízes dos nossos problemas, serviu para esconder atrás de um véu alienante a verdadeira causa, a concentração de renda.

Esse medo pariu Bolsonaro (embora não fosse o ideal para a mídia psdebista) e é este mesmo medo que sustenta seu governo. Mas o que aconteceria se este medo oficial, fabricado, exaurisse-se? O que iria nutrir Bolsonaro e sua corja da extrema direita?

É por isso que, em tempos de coronavírus, um medo muito mais real que o fabricado pelo governo, o presidente brasileiro menospreza tanto a dimensão epidêmica da doença. Contesta-se os fatos para se ter o controle do medo. Diz que o povo está sendo enganado, que o Covid-19 não passa de uma “gripezinha”. Na verdade, Bolsonaro teme que o medo que sustenta o seu poder, o medo falso, seja suplantado pelo medo real.

Este medo real pode trazer à tona a desigualdade social, o desprezo pela saúde pública, provocado, principalmente, pela política neoliberal de sucateamento do Estado. Este medo real pode colocar em risco o corte de gastos, medida que expõe, sem engodos ideológicos, a verdadeira face do capitalismo.

A mídia, contudo, que não tem nada de santa, vem se dedicando ao máximo para evitar a irrupção de tal visão política, manipulando - como é de praxe - o medo em relação ao coronavírus e despeja a culpa sobre o indivíduo que não lava a mão, que não respeita as recomendações etc., ocultando a responsabilidade do mercado, o grande agente destruidor das políticas públicas e promovedor da ampliação dos lucros.

O presidente, por seu turno, não quer evitar o pânico ao dar suas declarações de alguém que finge estar em um reino encantado, mas manter o monopólio do medo, o medo que o sustenta. Só pode haver um medo, o da esquerda (e das outras terminologias que o presidente associa a esse setor do espectro político).

Este tipo de pânico gera prazer e gozo, diferente do medo real. Por isso é fácil de ser manipulado. Existe o prazer de ver o corrupto preso; o bandido sendo violentado na cadeia; o gay sendo reprimido etc.. Aquele que compartilha do pensamento conservador e reacionário goza com esse tipo de demonstração de ódio. O pânico se transforma em prazer. É fato que a própria palavra “pânico” tem uma origem lasciva. Decorre do fato de as virgens/ninfas/mênades eram acometidas quando o “excitado" e lascivo Pan, com seus desejos animais, queria arrebatá-las. A palavra pânico é derivada de Pan.[4]

Precisamos nos libertar do medo oficial criado pela mídia, tanto o que sustenta o governo Bolsonaro quanto da manipulação que ela faz do medo desencadeado pelo coronavírus. Os dois medos visam esconder as mazelas provocadas pelo mercado que, por sua vez, promoveu o corte de gastos e o sucateamento do Estado para salvar as grandes fortunas.

Como disse Karl Marx “O medo cala a boca dos inocentes e faz prevalecer a verdade dos culpados”. Mas enquanto o povo se cala em meio ao pânico, a mídia e o governo fazem de tudo para esconder o verdadeiro culpado, o setor financeiro.


[1] DELEUMEAU, J. História do medo no Ocidente. São Paulo: Cia das Letras, 2009, p. 44.

[2] BAUMAN, Z. Em busca da política. Rio de Janeiro: Zahar, 2000, p. 69.

[3] GLASSNER, B. Cultura do medo. São Paulo: Francis, 2003, p. 27.

[4] HOYSTAD, O. M. Uma história do coração. Petrópolis: Vozes, 2015, p. 53.

*Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum

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