Pestes e epidemias mudam a vida. Mudam?

“As epidemias, portanto, não são, em si, educativas. São compulsivas, comoventes e fazem passar do horror ao amor, ao desejo dos encontros sob solidão. A trincheira faz sonhar e ver novas primaveras”, destaca Luiz Roberto Alves

Foto: Marcio James/Semcom
Escrito en OPINIÃO el

Sempre houve uma poética do infortúnio e da dor. As vozes se juntaram muitas vezes em comunidade para atos de solidariedade diante do horror e da morte. O discurso de mudança da vida cria empostações de cordas vocais a favor do reencontro humano sob tragédias. Já estão por toda parte a anunciar um novo tempo. No entanto, novo tempo de gogó não existe.

Este colunista ficou mais de um mês sem escrever para a Fórum. Atento ao que colegas escreviam, mas desassossegado diante do rio de tintas e emissões de energia que tem sido usado para questionar os discursos da família embusteira no poder.

Ao fim e ao cabo, além de todos os males locais perpetrados, foram os embusteiros e seus bajuladores para a Matriz da América, em viagem completamente desnecessária e de lá retornaram para disseminar ainda mais o Covid-19 neste país-objeto.

Por incrível que pareça, em vez de serem presos foram tratados com deferência, com testes clínicos e laboratoriais a toda hora e outras regalias. Um deles ainda é presidente, pois os seus eleitores justificam todos os seus embustes e culpam OS OUTROS pelo que ele faz ou que não faz.

Portanto, deve existir ainda algum infeliz a gritar MITO!

Volto para conectar os dois parágrafos.

No interior das várias formas de peste que assolaram o mundo nos vieram belos textos, geralmente a mostrar que as pessoas isoladas, exiladas ou entrincheiradas puderam refletir e, na reflexão, propor-se a mudanças.

No poema de Drummond, A Noite Dissolve os Homens, que tem a noite como metáfora da guerra, tudo anoitece, tudo fica paralisado, até a respiração. No entanto, o poeta vê a Aurora, ainda tímida, mas já “expulsando a treva noturna”, que é o fantasma opressivo da guerra que assassinou 55 milhões de pessoas, a maioria das quais não deu qualquer tiro de fuzil. Os balcões e os terraços das vilas já ouviram música, dança, felicitações e abraços à distância quando havia riscos de aproximação. Os mais destemidos, por compulsão, se voluntariaram. Tudo parecia ter mudado e um tempo de amor e paz era entendido como já chegado. Outro poema, escrito em 1800, sob outra epidemia, mostrava que “as gentes sonharam novas visões, novos encontros; criaram novas formas de vida e fizeram a terra se curar completamente”.

Está evidente que, como sugeriu o escritor angolano Walter Hugo Mãe em carta aos brasileiros, não teremos governo em quem nos apoiar. O que tiver de nascer e crescer dependerá da consciência cotidiana e comunitária dos e das brasileiros e brasileiras. O governo é dirigido por pessoas “entortadas” desde sempre, “convertidas” ao mal e a interesses de pequenos grupos ideológicos a usar certas multidões como massa de manobra nas ruas. Não farão outra coisa até serem defenestradas.

Infelizmente (ou felizmente?), o caminho para as mudanças que levem à justiça, à paz e ao amor não passa pelo discurso do infortúnio e da dor coletiva. Passa unicamente pela educação de indivíduos e povos vivida em tempos comuns e regulares da vida social.

Vale perguntar pelo “infelizmente” porque, sem dúvida, os momentos coletivos da dor podem ser genuínos e produzirem sinais exteriores e interiores de mudança. No entanto, no retorno à desafiadora realidade da vida normal, aqueles sinais esvaecem porque o modo-de-construir a sociedade é o mesmo e o modo de investir os bens não se altera, como também ocorre perda da memória dos momentos de infortúnio que levaram a superar, como por encanto, os privilégios de classe e de poder.

Se as pestes fossem mais duráveis, talvez nos educassem ao pensamento solidário, à preservação da terra comum, à repartição dos ganhos e ao abandono dos luxos e faustos. No entanto, ninguém deve desejar qualquer peste e menos ainda prolongadas, que significam mortes e sequelas, as quais geralmente fazem sofrer mais os empobrecidos e vulneráveis.

As epidemias, portanto, não são, em si, educativas. São compulsivas, comoventes e fazem passar do horror ao amor, ao desejo dos encontros sob solidão. A trincheira faz sonhar e ver novas primaveras.

O que efetivamente pode educar para mudanças de que se valham todas as pessoas de uma comunidade ou de um país são os confrontos tidos depois da epidemia e dos horrores vividos. A peste é como um discurso pesado, uma enunciação que nos diz da banalidade do capital, da riqueza concentrada, dos limites das estruturas da sociedade e de todos os nossos modos de vida. Mas é um discurso, que nos estimula a fazer bons discursos dentro dela. A sonhar.

Saídos dela, aí começa o momento de se educar para a nova vida. Até porque a vida diferente e solidária porventura havida durante a epidemia ou a peste não foi longa e nem possibilitou novas oportunidades. Chegada a normalidade se abrem oportunidades e a questão é: voltaremos aos momentos anteriores, igualmente, ou confrontaremos e questionaremos as armadilhas da “normalidade” e da mesmice a favor de uma vida mais digna para todos?

Esses confrontos serão educativos e mudancistas, transformadores. Individuais e comunitários, sem nenhuma esperança nos donos do capital ou no governo. Os primeiros gostam de fazer parte da Forbes e lutam pela lista dos mais influentes no fim do ano e assim farão. O governo, por seu lado, continuará em sua mediocridade porque foi formado por medíocres e ninguém pode dar o que não tem.

A sociedade organizada em associações várias, grupos de trabalho e encontro, escolas, comunidades, universidades, povos indígenas, instituições de servidores públicos, trabalhadores rurais, autônomos etc, essas sim poderão ter refletido sob a epidemia para então levantar a voz em suas entidades e propor novos modos de fazer a vida e novos modos de se organizar neste país diverso e plural, que precisa ter ainda a chance de sair da indignidade e da injustiça seculares rumo à Paz e ao Amor com e entre as pessoas.

*Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum