A epidemia do coronavírus no mundo está evidenciando as desigualdades sociais, apesar de aparentemente o vírus contaminar todos e, neste primeiro momento, pessoas das classes média e alta que viajaram para o exterior. De fato, o que salta aos olhos neste momento da epidemia é o fato dela ter tomado uma dimensão na cobertura jornalística muito maior que outras epidemias que ainda hoje vitimam mais pessoas, como a dengue e o sarampo.
À primeira vista, isto ocorre justamente por uma questão de classe: como o epicentro atual do coronavírus é a Europa e não o continente africano ou latino-americano, a visibilidade desta epidemia é muito maior. Uma lógica que também esteve presente quando a mídia hegemônica em todo o mundo, inclusive o Brasil, mobilizou os sentimentos de consternação no ataque do grupo terrorista Exército Islâmico à Paris em 2015. O grupo Boko Haram praticou ataques terroristas até mais violentos em 2019 na Nigéria sem a mesma repercussão.
Mas o classismo e o racismo também estão neste caso do coronavírus. E é importante este alerta porque há ideias entre algumas pessoas da periferia de que se trata de “doença de gente rica” e, portanto, não deveria ser objeto de preocupação da população da quebrada. Se não ficarmos atentos, pode-se em pouco tempo haver um deslocamento do epicentro da doença para a periferia e, por conta disto, sem a visibilidade que ela tem agora.
Uma análise de algumas medidas de contenção do vírus: a ordem é sair pouco de casa, procurar trabalhar em “home-office”, transferir as atividades didáticas de escolas e universidades para a modalidade online, suspender viagens internacionais, entre outros. Note-se que os atores atingidos por estas medidas protetivas são aqueles que não estão na maior parte do trabalho precarizado e informal. Se nas universidades as aulas foram suspensas e algumas adotaram o sistema de ensino à distância, como ficam os funcionários operacionais terceirizados? Evidente que eles continuarão trabalhando.
Há o caso relatado pelo colunista Lauro Jardim, do Globo, do empresário e sua esposa que contraíram o vírus em uma viagem, se colocaram em quarentena no apartamento deles porém obrigaram a empregada doméstica a continuar indo trabalhar desconsiderando o alto risco dela se contaminar.
Com isto, em um primeiro momento, observa-se que tais medidas, ao mesmo tempo que visam proteger um determinado segmento da sociedade, deixam o outro completamente desprotegido. Estes trabalhadores operacionais e precarizados se deslocam para suas casas de transporte coletivo, um ambiente potencialmente explosivo para uma contaminação massiva.
Esta situação se agrava por dois motivos conjunturais: o primeiro é a desregulamentação do trabalho imposta pela direita em todo o mundo e aplicada no Brasil com maior intensidade no ano passado. A lógica desta proposta é: o ganho depende de quanto trabalha e não de quanto é necessário para sobreviver. Empregadas domésticas, faxineiras, trabalhadores de aplicativos, ambulantes, flanelinhas, motoboys, cicloboys, entre outros teriam que optar entre ficar sem dinheiro ou sair as ruas em busca de trabalho. Ainda que estes trabalhadores contraiam o vírus e fiquem doentes, a tendência é que eles continuem trabalhando pois no mercado informal não tem nenhum tipo de proteção. Imagine este cenário de pessoas com o COVID-19 nas ruas entregando comida, dirigindo Uber, motos, vendendo coisas nas ruas, limpando casas... Imaginem estas pessoas andando nos trens, ônibus, metros lotados. O vírus vai para a periferia, mas volta com tudo pois estas pessoas atendem justamente estes que se julgariam protegidos. O risco é intensificar comportamentos de cunho fascista, racista, xenofóbico.
O segundo motivo é o desmonte do sistema público de saúde que está enfraquecido para o enfrentamento massivo desta epidemia. Este é o momento que mais se precisa do SUS e todo o seu arcabouço de atendimento, prevenção, medicina da família, entre outros. E da estrutura dos laboratórios públicos de pesquisa das universidades e institutos como o Fiocruz, Manguinhos, FURP e das universidades públicas.
Só para lembrar: 47,3% dos trabalhadores negros estão no mercado informal, 80% dos usuários do SUS se declaram negros. Em outras palavras, estamos falando de situações que atingem a população negra na sua maioria.
Daí que é o momento ímpar para se retomar a pactuação político-social da Constituinte de 1988 e barrar as mudanças de cunho neoliberal que tem sido feitas desde o golpe de 2016. É necessário revogar a emenda constitucional do teto de gastos, fortalecer o SUS e os laboratórios públicos e centrar a política de Estado não no “equilíbrio fiscal para obter a confiança dos mercados”, mas na capacidade de atendimento social massivo para garantir o bem-estar de todos os cidadãos.
*Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Fórum