Estamos sob o signo do Papa Francisco. Uma espécie de Francisco de Assis do século XXI. O Papa retoma, surpreendentemente, o que em religião se denomina “carisma” (o toque divino que nos distingue) franciscano: uma relação especial com a natureza e com a pobreza.
Francisco de Assis adotou uma percepção muito próxima da que nossos indígenas (como os Krenak) têm em relação à identidade de animais, plantas, rios e montanhas. Os Krenak chegam a dar nome às montanhas e identificam suas “famílias”.
Mas, hoje, gostaria de comentar a relação com a pobreza. E não exatamente a partir de um olhar sociológico ou econômico, mas sob a perspectiva da relação humana com a pobreza. Para mim, foi Clara de Favarone, a Santa Clara, que mais ousou neste tema. Vale a pena recordamos, ainda que brevemente, sua ousadia que, hoje, escandalizaria como escandalizou naquela Idade Média do século XIII.
Este foi o período em que as cidades se impunham sobre os feudos. Era assim em Assis, neste século XIII. A pobreza campeava. Assis se dividia entre a parte dos “maiores” (a nobreza) e dos “menores” (os pobres e os desvalidos, como os leprosos).
Talvez, justamente em função desta transição social, começaram a se multiplicar pequenas comunidades cristãs (aliás, o conceito de comunidade se opunha ao de feudos naquela quadra da nossa história), totalmente à margem da estrutura oficial eclesiástica.
Retomavam a tradição das comunidades cristãs primitivas, onde a caridade se plasmava na partilha com todos. Jovens, filhos de nobres ou comerciantes, abandonavam sua vida privilegiada, em especial, na Itália e Alemanha, e partiam para uma vida sem bens. Algo que já havia ocorrido com Sidarta, 400 anos antes de Cristo.
Aos 18 anos, Clara abandonou sua vida de luxo. Vivia num castelo, filha de um nobre. Se juntou à comunidade de Francisco e, em seguida, formou em São Damião (uma antiga capela próxima de alguns hospícios, em Assis) uma comunidade cristã feminina.
Desde o início, rompeu com diversos cânones. Resistiu a assumir a função de abadessa. Se negou á clausura plena, porque queria ter contato com os pobres e com a vida social. Vendeu sua herança e distribuiu o dinheiro arrecadado aos pobres, para não gerar qualquer dote que compraria seu ingresso num monastério beneditino (o único caminho para a vida consagrada feminina). Uma mulher forte e decidida.
Clara dialogava com o “movimento pauperístico” que alimentou um movimento de leigos no século XII. Um retorno ao ideal das primeiras comunidades cristãs: vida comunitária, vida apostólica, a identidade com a pobreza. No caso das mulheres, dialogava com a experiência do movimento das beguinas (possivelmente, o nome se relaciona com a vestimenta de cor bege), que se espalhou pelo norte da Itália, Bélgica e Alemanha. Um movimento totalmente à margem da estrutura eclesial, que se orientava por uma vida sóbria e que instalavam suas comunidades próximas a leprosários ou hospitais. No século XIII, este movimento chegou a envolver 6% da Bélgica e 10% da população de Colônia.
Toda esta história para refletir sobre nossa relação contemporânea com a pobreza. Vivemos um período de transição social como a do período de Francisco e Clara, em Assis. Contudo, ao contrário daquele período, o ideário social rejeita a pobreza como se rejeitava a lepra ou a peste negra.
Pobres desejam ser empreendedores; filhos de classe média se escoram na meritocracia para saltar degraus no sucesso pessoal. Não há qualquer questionamento em relação ao absurdo de existir bilionários neste mundo, uma condição de vida que vai muito além do necessário e que, para se manter, necessita produzir mais, destruindo a natureza e as relações humanas.
Parece estranho que, à beira do abismo, tenhamos a convicção que o melhor é dar um passo à frente.
Enfim, neste domingo de Carnaval, acordei com esta inquietação: por que, afinal, não ter uma vida de opulência ou ostentação é sinal de fracasso pessoal? Por qual motivo nos orgulhamos por viver na era da sociedade do desempenho?