A internet está cheia de análises e opiniões sobre as eleições. Como era de se esperar. Análises para todos os gostos. Desde a tradicional peneira para tentar cobrir o sol, até as catastrofistas. Muitos tentam explicar os resultados adversos porque teria havido uma falsificação e uma fraude gigantesca.
As desonestidades e as fake news no Brasil são partes intrínsecas do jogo político sujo das nossas elites para manter seus privilégios intactos.
Não são acostumados a seguir regras e cumprir a lei. Compra de votos e outras malandragens certamente aconteceram. O uso da fé, mentiras de todo tipo.
Quando ganhamos, e ganhamos muitas vezes, esses truques e desonestidades existiram. Ganhamos apesar dos crimes eleitorais e contra todas as sabedorias e tramas das famosas raposas felpudas.
Não acho que nossas análises devem ir por esse caminho. Não há indícios de algo mais grave, a não ser aqui e ali as mentiras e calúnias de sempre, a tradicional compra de votos, bispos neopentecostais carregando nas tintas, etc.
Em Recife, certamente foi a campanha mais suja entre todas as capitais.
Na capital paulista, Boulos e Erundina fizeram uma grande campanha. Acho que foi o ponto alto dessa eleição.
Política eleitoral com P maiúsculo. Exemplar...
Para termos um quadro completo e tirar todos os ensinamentos possíveis, vai ser preciso analisar cidade por cidade para entendermos de fato o significado dos números.
Esta compreensão profunda sobre o processo eleitoral e seus resultados vai ser decisiva para a batalha mais importante, que está prevista para se dar em 2022.
Acho que os dois fatores mais relevantes para os resultados em todo o Brasil, e que devemos prestar muita atenção, são de outra natureza.
Um fator foi objetivo, no sentido de que é parte da realidade e que independe da nossa vontade e consciência. E o outro foi um fator subjetivo, insuficiência de análise, erro de avaliação e despreparo para o embate eleitoral. Senão vejamos:
1 - O fator objetivo é que ainda estamos vivendo o ambiente e o clima social e político criado para dar o golpe na presidenta Dilma.
O aspecto mais marcante dessa conjuntura e que não deveríamos ignorar em nossas análises, nem poderiam estar fora do preparo para o enfrentamento eleitoral, é a avassaladora manipulação da opinião pública, da qual participaram ativamente na construção toda a grande mídia, a gangue da Lava Jato, grande parte do Judiciário, o Congresso, a Polícia Federal, etc.
Na verdade, boa parte do país foi envolvido, se deixou levar ou aderiu à histeria moralista criada ardilosamente para obter os dividendos políticos que a direita não estava conseguindo dentro da vida política e eleitoral. Judicializaram a política com péssimas intenções. Perderam quatro eleições nacionais e todas as pesquisas indicavam que Lula era imbatível na próxima.
Surpreendentemente, até setores sociais que não tinham nada a ganhar com a ruptura da ordem democrática acompanharam a onda golpista, demonstrando não ter consciência de classe e nem mesmo instinto de sobrevivência. Hoje estão descobrindo, aos poucos, a verdadeira natureza do que apoiaram.
A trama do golpe na jovem e imperfeita democracia brasileira foi bem sucedida na manipulação da opinião pública e temos que admitir que conquistou corações e mentes de boa parte do país, logrando isolar em grande medida a esquerda e o PT e prender e retirar Lula da disputa eleitoral.
O objetivo era extinguir o PT, destruir a liderança do ex-presidente Lula e “passar o Brasil a limpo”.
Não conseguiram, mas causaram um estrago de proporções na vida democrática e com consequências políticas desastrosas. De forma fraudulenta, levaram o pêndulo político para o lado direito.
A estratégia posta em prática depois do impeachment da presidenta legalmente eleita, para dar continuidade ao golpe e continuar o trabalho de demolição, era uma espécie de água sanitária para apagar as conquistas sociais das últimas décadas, indo até as que vieram da época de Getúlio Vargas; tentariam fazer desaparecer os movimentos sociais e anular as demandas por mudanças de vários segmentos da sociedade como as mulheres, os negros, os povos indígenas, as demandas dos segmentos LGBT, dos jovens e dos trabalhadores.
Outro objetivo era domesticar a arte e a cultura brasileira, o pensamento crítico, os cientistas e as universidades. E destruir tudo que signifique soberania nacional para nos colocar como peça dos EUA no cenário global e nos enfrentamentos com a China.
Tudo isso, orientado por forças ocultas internacionais, que estão operando globalmente, com grandes estratégias, técnicas de comunicação, muito dinheiro, assessorias, etc.
Temos que considerar a possibilidade de estarmos vivendo uma guerra híbrida com todas as suas características e as suas diversas frentes, tipo lawfare.
Temos que considerar que não dá para continuar fazendo a disputa política no Brasil com uma mentalidade provinciana, atrasada, com uma compreensão da realidade sem a profundidade necessária e que não considera o que está se passando no mundo.
Não dá para ir tocando o barco como se fosse uma disputa como era décadas atrás, ou como se o Brasil fosse um lugar perdido no mapa-mundi, cuja dinâmica política é fruto dos pequenos e provincianos conflitos locais. Como se não fôssemos um dos maiores objetos da cobiça do capital globalizado.
O Brasil é uma das maiores economias do mundo, tem grandes reservas de minerais estratégicos, uma das maiores reservas de petróleo do planeta, 17% das reservas de água potável do mundo e uma megabiodiversidade.
Além disso tudo, é preciso considerar o potencial de liderança do nosso país.
O mundo está sendo redesenhado, algo do tipo “um novo tratado de Tordesilhas” entre as grandes potências e as novas perimetrais dos territórios de influência e domínio estão sendo definidas na marra.
Não podemos pensar que vamos ter uma vida fácil daqui para frente.
A extrema-direita globalizada, esses idiotas que frequentemente subestimamos, por exemplo, querem desconstruir o país, enfraquecer o Estado nacional, destruir nossa coesão social, enfraquecer um dos pilares dessa coesão nacional que é nossa cultura. O objetivo dessa turma é eliminar as condições que possibilitam existirmos enquanto nação.
Os neoliberais, a direita que se crê civilizada e contemporânea, estão atuando juntos com essa extrema-direita reacionária e retrógrada, aceitando essa destruição dos fundamentos da nação de olho nos negócios e na apropriação dos ativos públicos. E também para poderem operar sem as regulamentações e restrições impostas por uma sociedade civilizada.
Querem fazer daqui o que o Chile de Pinochet foi na década de 70.
Para isso, foi urdida a grande trama de demonização das esquerdas, principalmente o PT, o maior partido de esquerda e o mais influente, para prender Lula e retirá-lo da disputa.
O falado antipetismo é só uma parte dessa construção maquiavélica.
Apesar dos desgastes do projeto golpista e do seu governo e os muitos e graves problemas que estão emergindo, revelando o verdadeiro caráter antipopular, antidemocrático, contra nossa soberania e contra a sustentabilidade ambiental do processo golpista, a sociedade brasileira ainda, nos dias de hoje, é o cenário dantesco que eles impuseram ao país e que diariamente, de mil maneiras, vão agravando.
Como fazer política no Brasil, disputar a hegemonia política com essas forças poderosas sem ter consciência do que estamos vivendo, das forças que estamos enfrentando e sem avaliar o tamanho da encrenca?
2 - O segundo fator que pesou demais e contribuiu para o resultado negativo dessas eleições é de natureza subjetiva, no âmbito das nossas estratégias e do preparo para essas eleições.
Não tivemos uma estratégia nacional que desse conta de propor alternativas a partir da compreensão das condições adversas que iriam sobredeterminar o pleito municipal.
Essa foi a eleição municipal mais entrelaçada com as questões políticas nacionais e com os desafios postos pela crise política que o país está vivendo e não conseguimos tirar nenhuma grande consequência disso.
Nem na escolha do caminho e tampouco na definição do candidato em cada cidade. Ficamos ao “Deus dará”, dependendo da lucidez e da acuidade dos líderes locais.
Eu já escrevi sobre isso antes, não é um humor advindo de resultados eleitorais adversos.
Fui pré-candidato a prefeito de Salvador e fiquei pasmo como nossas forças foram dispostas para o enfrentamento. Não podia dar certo...
Estava claro, desde antes do 1° turno, que a estratégia estava errada, se é que pode se chamar de estratégia a posição de ter candidatos do partido em todos os lugares e deixar que a escolha do candidato reflita principalmente a correlação de forças entre as tendências internas do partido ou a vontade do líder regional mais influente.
Como se a realidade não existisse, ou não fosse importante considerá-la.
O PT, como o maior partido de esquerda, teria que defender e tentar abrir um caminho comum para toda a esquerda e para a oposição, representando um espírito frentista. Deveríamos defender que o principal seria canalizar os esforços para fortalecer a candidatura em melhores condições de enfrentar as forças reacionárias e conservadoras.
A tarefa principal seria derrotar a direita e já ir criando a frente e as condições que serão decisivas em 2022.
Teríamos que politizar a disputa, como Boulos e Erundina fizeram na capital paulista.
Não vou aqui agora me estender nesse comentário. Outros, em melhores condições, podem analisar aspectos importantes como a articulação entre os temas ligados à cidade com os temas nacionais, a presença das igrejas e dos policiais na disputa, a campanha pela internet, programas, etc.
Vamos pagar um preço alto por termos fechado questão antes de abrir a discussão, apesar de que o resultado final não foi bom, mas também não foi péssimo. Poderia ter sido bem pior.
Temos algumas vitórias, alguns avanços em meio a várias derrotas e no geral um resultado negativo.
O resultado das eleições fortaleceu a centro-direita, os neoliberais, que certamente vão se apresentar como alternativa à extrema-direita para 2022. E não ficarei surpreso se conseguirem atrair uma parte da dispersa centro-esquerda.
Vamos ter que refletir sobre os nossos erros, as nossas insuficiências e buscar construir já uma estratégia para 2022 que possa nos colocar com possibilidades de vitória.
Precisaremos recuperar o tempo perdido e seguir adiante. Renovar as energias.
O ponto de partida é compreender o que aconteceu e o significado do resultado.
*Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum