Vanusa nos deixa uma obra digna e um profundo sentimento de culpa

Quantas vezes você, assim como eu, assistiu e compartilhou às gargalhadas o famoso vídeo da cantora interpretando de forma canhestra o Hino Nacional Brasileiro?

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Vanusa morreu ao lado dos filhos, em uma clínica de repouso, na cidade de Santos, litoral de São Paulo, num lindo domingo de sol de primavera, 8 de novembro de 2020. Um certo sentimento de culpa deve correr, feito frio na espinha por milhões de nós neste momento.

Escrevo no calor da sua morte e lembro artigo que fiz em 2015, momento de sua última volta:

Quantas vezes você, assim como eu, assistiu e compartilhou às gargalhadas o famoso vídeo da cantora Vanusa interpretando de forma canhestra o Hino Nacional Brasileiro? Quantas vezes lembrou do episódio e fez troça, reafirmou a sua superioridade de ser-humano equilibrado e perfeitamente ciente de suas funções sobre um outro que estava ali, em frangalhos. Um outro que estava ali com um quadro de depressão, mantido de pé à base de remédios, sofrendo naquele exato momento do maior pavor que alguém que tem a coragem de se apresentar em público (você tem, leitor?), que é o que popularmente conhecemos como “branco”.

O episódio, ocorrido em 2009, liquidou moralmente com a cantora. Depois disso, passou seis meses internada com síndrome do pânico, jurando para si mesma que nunca mais cantaria na vida, naquele mesmo momento em que eu, você, enfim, todos nós, nos divertíamos à beça com o tal vídeo.

O tempo, quase sempre o melhor remédio, passou e reconstruiu Vanusa. Ou, melhor ainda, permitiu uma quase virada que se completou, em 2015, com o lindo disco “Vanusa Santos Flores”, com a direção artística e papel preponderante em todo o processo de Zeca Baleiro.

O ano foi bom para ela. Além do disco inédito, o selo Discobertas lançou duas caixas com oito CD’s que ela gravou entre 1967 e 1979. Vanusa tem uma carreira irregular. Fez coisas extremamente populares e outras magníficas e inesquecíveis, entre elas a linda gravação original de “Paralelas”, canção emblemática de Belchior. O seu melhor está nestas caixas.

Vanusa chega ao fim de sua trajetória com a missão mais do que cumprida. Foi querida pelo público brasileiro, vendeu mais de três milhões de discos, um feito e tanto que ultrapassa de longe grandes medalhões de nossa música.

Trabalhou, viveu, amou e teve um final trágico, chegando a ficar internada por vários meses em um hospital público da cidade de Santos, onde, ainda assim, apesar de alguns anos parada, mobilizou imprensa e público, consternados com sua situação.

Estava com a doença de Alzheimer, mal sabia quem era e o que ocorria à sua volta. Aretha Marcos, filha dela com o cantor Antonio Marcos, falou sobre o assunto em agosto:

“Minha mãe não tem mais cognitivo. Ela assistiu a minha reportagem na TV e não entendeu nada. Não tem mais como conversar com ela. Minha mãe se tornou uma criança, que às vezes fica brava”, contou.

Volto a 2015, período do lançamento de seu último álbum, “Vanusa Santos Flores”:

No final das contas, Vanusa deu a melhor resposta para todos nós. O que o público (nós todos, não é mesmo?) fez dela nos últimos anos é muito menor e mesquinho. O que ela devolve vem de forma altiva, profissional, equilibrada. Vem em forma de arte, música de boa qualidade e uma recuperação dramática, emocionante e digna de todos os nossos aplausos. E desculpas.

Que ela descanse com a paz que merece por tudo que nos deixou.