Reflexões sobre o preconceito e a música eletrônica – Primeira Parte

A grande novidade – que já não é tão novidade assim – é a máquina capaz de repetir sons em velocidade e com a exatidão que as mãos do homem jamais conseguiriam

Escrito en OPINIÃO el

Apesar de ter invadido o planeta já há algumas décadas, a música eletrônica, sobretudo entre os músicos, é alvo de preconceito enorme. Posso falar por conta própria, se apontar o dedo para ninguém. Durante um bom tempo, como bom quadradão, como diria Caetano em priscas eras, repetia que aquilo não era música, qualquer um com um computador faz entre outras asneiras.

Certa vez postei uma esculhambada no álbum “Random Acess Memory”, do duo Daft Punk. Fui repreendido por alguns amigos, entre eles dois especialistas que já se nos deixaram, o DJ Wagner Parra e o pioneiro do gênero, Johnny Hansen, líder da banda Harry and The Addicts. Os dois, cada um à sua maneira, me disseram a mesma coisa: “ouça!”

E foi o que fiz dai em diante. Ouvi repetidas vezes o álbum e hoje o considero uma das melhores coisas gravadas no planeta nos últimos dez anos. O Daft Punk me levou para outros, principalmente o Kraftweerk, banda alemã que é uma espécie de Beatles do gênero.

Os discos do grupo alemão são, pra dizer o mínimo, magníficos. O uso econômico de vozes musicais em timbres processados nos apresenta, além de música de excelente qualidade, inovações rítmicas e sonoras que só este novíssimo instrumento, o computador, poderia nos dar.

Já ouvi de vários músicos a frase: “precisa de uma máquina, jamais eles fariam isso com as mãos”. Sim, e o que seriam das mãos e da música de Bach se não fosse o piano (ou o cravo); ou de Miles Davis (um precursor do uso de instrumentos eletrônicos) não fosse seu trompete?

A grande novidade – que já não é tão novidade assim – é a máquina capaz de repetir sons em velocidade e com a exatidão que as mãos do homem jamais conseguiriam. E, de repente, um mundo de sons se abriu no meu universo sobre o meu errôneo preconceito.

Desde de então, com a mesma fome que o menino que descobria os Rolling Stones, Chico Buarque e Yes, passei a me encantar com bandas que haviam passado despercebidas como o Joy Division, New Order, Depeche Mode e, mais adiante, os suecos do Yello, o Massive Atack, autores da canção tema da série House e de mais um sem fim de ótimos discos, entre inúmeros outros.

Os caminhos para as boas coisas do gênero são quase infinitos e se embrenham pelo Hip Hop, o trance, o Trip Hop e muitos mais. No Brasil, descobri acima de qualquer outra a obra do pernambucano DJ Dolores. Através dele, vários outros artistas incentivados pelas segundas e terceiras ondas do Mangue Beat, como Negrita MC, Miró da Muribeca e tantos mais.

Um ótimo guia para se compreender e viajar pelo outro lado do planeta que não frequenta o mainstream eletrônico, é o livro do escritor e músico angolano Kalaf Epalanga, “Também os brancos sabem dançar”. Kalaf é integrante do excelente projeto Buraka Som Sistema, um dos inventores e incentivadores do Kuduro, uma febre do país que se espalhou pela África e parte da Europa, inspirada nos golpes de Jean Claude Van Damme.

O Buraka Som Sistema gravou, entre outros, com Ivete Sangalo, a canção “A Galinha-d’Angola”, para o projeto de Toquinho e Vinícius de Moraes, “A Arca de Noé”. Além disso, entre as mais tocadas da sua lista no Spotify, está a participação com a brasileira Karol Conka, em “Bota”.

Foi Epalanga quem sugeriu que ouvíssemos a multiartista Mathangi Maya Arulpragasam, OBE, mais conhecida como M.I.A. Uma cantora, rapper, compositora, cineasta, produtora, diretora e ativista britânica, de origem tâmil engajada com as questões dos refugiados, que produz clipes e músicas de tirar o fôlego.

O assunto vai longe. Ainda nem passamos pelo RAP, o funk brasileiro entre outros gêneros. Que esta introdução sirva para que mais gente, assim como eu e tantos amigos, abram seus corações e mentes e sigam em busca de todos os futuros possíveis e prováveis.