Direita e esquerda: entre o ódio e a esperança

A esquerda não fala mais em matar ninguém, já a direita tem como lema “bandido bom é bandido morto". Bolsonaro em um de seus discursos inflamados desejou que a presidenta Dilma Rousseff morresse de câncer.

Imagem: votons.info (reprodução)
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A historiadora Bárbara Rosenwein critica a noção de “regime emocional" desenvolvida por William Reddy na qual se entende que todo grupo dirigente impõe “suas normas e seus padrões emocionais a todos os membros da sociedade" e os que sofrem com essa imposição criam para si um “refúgio emocional". Rosenwein acredita que “em todas as épocas, e em todas as sociedades, quase inevitavelmente existe uma multiplicidade de comunidades emocionais, cada uma com suas próprias normas e seus próprios modos de expressão”.[1]

Esse conceito de comunidade emocional pode ser usado para compreendermos o discurso político da esquerda e da direita atual.

Como mostra Ludivine Bantigny, houve por muito tempo uma desconfiança da política em relação às emoções. Desde o iluminismo a razão foi extremamente exaltada. Nos finais do século XIX, Gustave Le Bon associava as emoções à manipulação.[2] Contudo, se voltarmos à Aristóteles, a retórica política (também a judicial e a epidictica) usa tanto a razão quanto a emoção para mobilizar.

Hoje ainda vemos alguns comentários de grupos políticos que se dizem de centro, a chamada Terceira Via, condenando tanto os militantes de esquerda quanto os de direita por pensarem com o coração e não com o cérebro. E desvalorizam ambos os discursos chamando-os de radicais.

Esse argumento não passa de estratégia retórica, já que é impossível um discurso político ser puramente racional. A Terceira Via usa tal concepção para convencer de que ela é o melhor caminho, promovendo um preconceito contra a emoção no discurso.

Acreditamos ser possível identificar as comunidades emocionais nos polos políticos que nos debruçamos nesta oportunidade pelo fato de a atividade retórica exigir a exposição emocional. Aristóteles, por exemplo, é enfático ao dizer que “obtém-se a persuasão nos ouvintes, quando o discurso os leva a sentir uma  paixão”.[3] É o emocional o principal  elemento que leva as pessoas a se  inclinarem a uma tese. “Tanto é certo que o espírito e alma da Eloquência consiste propriamente nos afetos”[4], nos mostra o grande orador romano Fábio Quintiliano.

O ódio: a emoção da direita

A principal emoção da comunidade emocional edificada pela direita política é o ódio. A mídia cria um discurso que incessantemente classifica política como algo sujo, corrupto, sendo a honestidade, por seu turno, algo extremamente raro neste meio. Política se resume à corrupção. O senso comum acaba persuadido de que o problema da miséria é a corrupção e que é necessário acabar com ela.

A forma que a direita usa, em seu discurso, para combater a corrupção é odiá-la. No Brasil, depois do espetáculo da Lava Jato, passou-se a associar corrupção à esquerda. O PT é alvo de um forte discurso de ódio assim como as propostas da esquerda, como igualdade de gênero, antirracismo etc..

O discurso de ódio da direita historicamente pode ser encontrado em Hitler, Mussolini e, mais recentemente, em Trump. É uma eloquência baseada no ataque e na mentira. Hitler atacava os judeus, Mussolini a democracia, Trump e Bolsonaro a mídia e a oposição e a direita europeia ataca o imigrante.

As emoções chave para o engajamento na Ação Francesa, grupo de direita que atraiu muitos jovens de classe média na primeira metade do século XX, eram a virulência e a brutalidade, segundo relata Rauol Girardet, que fez parte do grupo em sua juventude.[5]

Neste meio não há nenhum argumento baseado no amor, a emoção oposta ao ódio. Para suprir a falta de um sentimento positivo, o discurso conservador se apoia na religião. Desta forma, o ódio promove uma união contra os inimigos e a religião uma coesão interna.

A cólera é fundamental no discurso político desde Aristóteles. Ela combina o sofrimento e o desejo de vingança. Além disso, ela representa virilidade “todo homem que exerce um poder deve passar pela experiência da cólera”.[6] Esses políticos conservadores acreditavam que a mulher era útil para acalmar a cólera do homem. Não é difícil, por conta disto, identificarmos um conteúdo extremamente machista entre os membros da direita.

Uma questão curiosa liga Bolsonaro aos reis bárbaros de outrora. Bruno Dumézil mostra que um rei Franco era capaz “de expressar sua irritação por ocasião de uma audiência pública, e logo em seguida entregar-se ao espírito de zombaria sobre o mesmo tema num encontro privado".[7] Do mesmo jeito, Bolsonaro grita com jornalistas ao tratar sobre o preço do arroz e em sua live no YouTube de quinta-feira, trata o assunto de maneira descontraída com uma criança ornamentada com um chapéu de boiadeiro.

A esperança: a emoção da esquerda

Quem não lembra do slogan da campanha de Lula em 2002 que dizia “a esperança vencerá o medo"? Esta é a principal emoção da comunidade emocional constituída pela esquerda.

Há um filósofo que trata desta questão: Ernst Bloch. Afirma que a esperança “é a mais humana de todas as emoções”.[8] Ela “frustra o medo" e “afoga a angústia”. É um afeto expectante positivo que mostra que “ainda há salvação”.

Contudo, nem mesmo a Revolução Francesa abriu para uma esperança autêntica. Pois se tratava de um futuro imaginado pelos iluministas.[9] Ou seja, um futuro já velho. A esperança autêntica é a que deseja algo novo de fato.

De acordo com Bloch, antes de Marx a esperança não aparecia na filosofia. Entretanto, “desde Marx não existe mais investigação da verdade e nem juízo realista que possam esquivar-se dos conteúdos subjetivos e objetivos da esperança do mundo... A filosofia terá consciência do amanhã, tomará o partido do futuro, terá ciência da esperança. Do contrário, não terá mais saber".[10]

Marx concretizou a esperança, tirou-a do campo do abstrato. Transformou-a no objetivo de todo agir.

Já a cólera que alimenta o comunista não é o do opressor contra o oprimido, como no caso da direita que descarrega sua ira contra as minorias. Trata-se de uma luta revolucionária contra o opressor. É um ódio de guerra. Não é uma questão de vingança, mas de revolução.

Contudo, ao longo do tempo ocorreu uma transformação emocional nesta comunidade. O discurso mais agressivo pode ser encontrado em Mao Tse Tung, que deixa claro que a Revolução é um ato de violência no qual uma classe derrota a outra. Mas Che Guevara traz para essa comunidade emocional o amor: “o verdadeiro revolucionário é guiado por grandes sentimentos de amor".

A partir de Che, o discurso da esquerda não adota mais um teor violento e passa a valorizar no interior de sua comunidade emocional o sentimento amoroso. Ademais, sem revolucionários, com a predominância total de uma esquerda que luta por vagas no parlamento, a cólera foi abandonada definitivamente e a comunidade emocional, em torno de um discurso carregado de elementos relacionados ao amor, esperança e justiça social, homogeneizou-se.

A esquerda não fala mais em matar ninguém, já a direita tem como lema “bandido bom é bandido morto". Bolsonaro em um de seus discursos inflamados desejou que a presidenta Dilma Rousseff morresse de câncer.

Deste modo, as duas comunidades emocionais brevemente (pode ser que um aprofundamento nestas questões nos traga novas conclusões) analisadas aqui expressam emoções específicas, particulares. A que está presente em uma não pode ser encontrada na outra. A direita, focada no passado, jamais poderá ter a esperança como epicentro de suas emoções. Assim como a esquerda que, por sua vez, abandonou a luta revolucionária, jamais terá o ódio como uma de suas características. Contudo, cabe lembrar que tanto o ódio quanto a esperança são fundamentais para ampliar o poder de mobilização de um discurso político.

Enfim, é importante ressaltar que ambos os polos políticos agenciam tais emoções na retórica que elaboram para atrair militantes para as suas fileiras. A persuasão precisa das paixões para acontecer.


[1] ROSENWEIN, B. A alta Idade Média. In: CORBIN, A., COURTINE, J-J. e VIGARELLO, G. (Dirs.) História das emoções. Petrópolis, RJ: Vozes, 2020, p. 137-138.

[2] BANTIGNY, Ludivine. Engajar-se: política, evento e gerações. In: CORBIN, A., COURTINE, J-J. e VIGARELLO, G. (Dirs.) História das emoções. Petrópolis, RJ: Vozes, 2020.

[3] ARISTÓTELES.  Arte  retórica  e  poética. Rio de  Janeiro: Tecnoprint,  s/d,  p. 35.

[4] QUINTILIANO,  M.  Fabio.  Instituiçoens  oratórias.  Trad:  Jeronymo  Soares  Barbosa.  Tomo  Primeiro,  Coimbra: Imprensa  Real da  Universidade, 1788,  p. 440.

[5] BANTIGNY, Ludivine. Op. Cit., p. 198.

[6] SARTRE, M. Os gregos. In: In: CORBIN, A., COURTINE, J-J. e VIGARELLO, G. (Dirs.) História das emoções. Petrópolis, RJ: Vozes, 2020. p. 33.

[7] DUMÉZIL, B. Os bárbaros. In: CORBIN, A., COURTINE, J-J. e VIGARELLO, G. (Dirs.) História das emoções. Petrópolis, RJ: Vozes, 2020. p. 130-131.

[8] BLOCH, E. O princípio esperança. Rio de Janeiro: Contraponto/Eduerj, 2005, p. 77.

[9] Id., p. 139

[10] Id., p. 17.