Parte significativa da sociedade brasileira resiste em admitir o racismo, ainda que colocada ante evidências. Não foram poucas as pessoas que admitiram que o assassinato de João Alberto Freitas no dia 19 por seguranças em uma loja do Carrefour em Porto Alegre foi hediondo, mas não se configurou como racismo. A lógica dos argumentos destas pessoas foi de que a vítima tinha “provocado” antes funcionários da loja e que os vigilantes agiram de forma impudente, independentemente da raça da vítima. Seria mais um caso de “treinamento inadequado” dos seguranças do que uma prática racista. Alguns vão mais além e afirmam que é necessário treinar melhor os seguranças de modo geral. Deslocam o problema do racismo para uma questão de postura inadequada desses funcionários.
Coincidentemente, no dia 20 de novembro um episódio de intolerância também ocorreu na cidade de São Paulo, na padaria Dona Deola, na zona oeste da cidade. Neste dia, Lidiane Biezok estava no balcão do estabelecimento, jogou guardanapos no chão e falou para uma das atendentes: “Sabe para o que você presta? Para pegar os meus restos.” Além disto, desferiu uma onda de ataques de cunho racista e homofóbico direcionada principalmente a um casal homossexual que consumia na padaria. O estabelecimento acionou a Polícia Militar, que deteve a cliente, mas que foi liberada em seguida a pedido da sua mãe, que afirmou ser ela acometida por transtornos psiquiátricos.
Trago estes dois fatos para demonstrar a diferença de tratamento. No segundo, uma mulher branca agride verbalmente clientes e funcionários da loja e é tratada com todos os cuidados. No primeiro, as supostas ofensas que o cliente negro desferiu contra os funcionários foi punida com a morte. Se fosse uma prática comum tratar com violência situações de agressão em estabelecimentos, a cliente da Dona Deola poderia também estar morta. E não só está viva como está solta, ainda se colocando como vítima.
Antes que algum desavisado fale, não estou em hipótese alguma defendendo que Lidiane Biezok seja agredida fisicamente por seguranças ou policiais. Mas penso que todos os cuidados que ela recebeu neste incidente devam ser para todos (inclusive deveria ser também para João Alberto Freitas que, se assim acontecesse, estaria vivo como Lidiane). A diferença de tratamento nos dois casos é a prova cabal do racismo que existe no Brasil. Só não enxerga quem quer, ou quem é privilegiado pelo próprio racismo.
Racismo gera privilégios
Na sexta feira (20), após o trágico acontecimento em Porto Alegre, as ações do Carrefour tiveram alta de 0,49%. A repercussão negativa do caso fez as ações da empresa sofrerem uma queda de mais de 6% no dia 23, segunda-feira.
O mercado de ações pouco está preocupado com racismo, tolerância e valores éticos. O que importa neste cassino é a aposta no crescimento da empresa. A queda de 6% se deveu a percepção de que estes fatos irão gerar um impacto negativo na imagem e, por tabela, no faturamento da empresa, pelo menos no curto médio prazo. Chamo a atenção para isto, a repercussão, inclusive internacional, pedidos de cassação de alvarás, protestos em todo o Brasil, campanhas de boicote, entre outros, que colocaram a empresa na defensiva. Há uma crise da marca que terá impactos imediatos na sua rentabilidade. E é isto que teve como consequência imediata a queda no preço das ações.
A grande questão que se coloca é se esta situação se manterá por muito tempo. Passado o calor dos acontecimentos, esta imagem negativa da marca Carrefour irá se manter?
A análise deste processo é que indica a consolidação ou não da estrutura racista no Brasil, ou se ela se movimenta para dar conta deste universo de pressões. A cultura corporativa no Brasil é extremamente atrasada e resistente a pensar a diversidade como ferramenta de gestão, como ocorre, por exemplo, nos Estados Unidos.
No artigo Making diferences matter, os autores David Thomas e Robin Ely, da Universidade Harvard, apontam a importância de se constituir ambientes de diversidade como forma de aumentar a eficiência e a produtividade. Para eles, um ambiente corporativo não diverso causa estranhamentos aos trabalhadores e isto gera impactos na produtividade. Já um ambiente em que a diversidade está presente, inclusive com mecanismos de gestão dos conflitos internos, não só retira este estranhamento como também gera um conforto e acolhimento que potencializam a produção. Isto tem se revelado uma tendência na gestão empresarial norte-americana.
No Brasil, condições sócio-históricas singulares que levaram à racialização das classes sociais desde o princípio (branco como senhor, negro como escravizado e depois, branco como proprietário e negro como subalterno) transformam o racismo numa estrutura de estratificação social que, muitas vezes, é aproveitada pelo capital como forma de potencializar seu faturamento. O racismo permite, por exemplo, dispor de mão de obra negra em que se pode pagar salários aviltantes e ainda se posar de benemérito porque “está dando uma chance”. Por isto, normalizam-se posições em que se tenta justificar um homicídio como o que ocorreu em Porto Alegre. E, no mesmo diapasão, se justifica a agressão de uma cliente em uma padaria porque ela sofre transtornos mentais. Ao branco se permite até mesmo transgressões justificadas por problemas de saúde mental. Ao negro, o suposto desrespeito é punido com agressão e morte.
Por estar solidificada esta cultura racista na sociedade é que as empresas ainda tratam a questão da diversidade como tópica, superficial, como mera carta de intenções. Não se sentem ainda pressionadas. O Carrefour tem sete episódios graves de intolerância e violência. Este último foi bárbaro e gerou protestos em todo o mundo. Somente após tudo isso é que as suas ações tiveram uma queda, mas não se sabe até quando.
O racismo estrutural brasileiro é isto.