Os intelectuais da atualidade concebem as mídias sociais como uma nova esfera pública, um local de exercício da cidadania. Isso corrobora a compreensão do consumo de forma construtiva, participativa, e não uma atividade passiva. O consumidor apropria-se, à sua maneira, do que consome e acaba produzindo algo diverso que compartilha, propaga.
Mas estes intelectuais, abismados com a nova vida no ciberespaço, esquecem que a vida no espaço físico não deixou de ser importante, talvez, fundamental. A liberdade não se resume apenas à liberdade de pensamento e de expressão. Liberdades que as redes sociais possibilitam, de forma mercadológica, mas ainda assim, de uma maneira jamais vista.
No entanto, cabe lembrar que, o consumo não se resume apenas aos produtos midiáticos, embora sejamos obrigados a observar a sua imensa predominância nas formas consumistas.
As pessoas querem consumir viagens, academias, bares e restaurantes. Na maioria esmagadora das vezes, para exibir este consumo nas redes sociais através de fotos e vídeos. Não é suficiente consumir, é preciso compartilhar, fazer com que os outros consumam.
A exibição de uma vida feliz nas redes, que por sua vez, precisa da exibição do corpo, é parte do narcisismo exacerbado estimulado pelas mídias sociais. Mas, para exibir essa “vida feliz" é preciso ter algo para fotografar ou filmar (pessoas se unem numa mesma festa e tiram a foto da confraternização para compartilhar entre eles mesmos nas redes sociais).
Viagens, confraternizações, corpos modelados e maquiagens são os principais produtos que circulam nas redes sociais. As pessoas oferecem voluntaria e gratuitamente sua mão de obra no ciberespaço, produzindo conteúdo para que outros compartilhem, curtam, para que produtos em oferta relacionados ao que foi exibido por um amigo saltem em nossas timelines. A grande lógica comercial da Web 2.0 é o usuário produzir conteúdo e a plataforma ficar com toda a receita.
O consumo tornou-se mais alienado do que nunca, já que o produto é menos para ser usado que para ser exibido. Baudrillard já havia nos alertado para este fenômeno, mas com as redes sociais ele se expandiu agressivamente.
Eu até entendo que o nascimento de uma cidadania cultural aproximou o consumo de bens à cidadania, como defende Néstor Canclini, mas isto só vale para o consumo das mídias. Com a falência das instituições democráticas, as pessoas perderam as esperanças nas velhas formas de exercício da cidadania (sindicatos, partidos políticos, etc.) para ter liberdade de expressão, lugar de pertencimento, informação e representação de interesses através do consumo privado.
Consumo tornou-se conquista. Ter, pelo mero fato de desejar. Alguns dizem até que o que possuem é fruto do trabalho. O trabalho, neste caso, é alienado, pois não é a finalidade em si. Trabalha-se para consumir. Contudo, o consumo acaba se tornando alienado, pois se consome para exibir. Não se pensa no que se produz, nem no que se consome, a finalidade é a exibição. É a sociedade narcisista e, por conseguinte, exibicionista.
Como manter o isolamento social em uma sociedade exibicionista? Quando o indivíduo defende a violação do isolamento social em um período de pandemia em nome da liberdade, ele está se referindo à liberdade de consumo. Mas não se trata do consumo cidadão que, mesmo em tempos pandêmicos, pode ser exercido. De nossas casas podemos ver filmes de representatividade negra, gay, podemos produzir comentários, exercer a liberdade de expressão, etc.
A violação às medidas de contenção do vírus se dá pelo interesse de consumir produtos físicos. Produtos que possibilitam a exibição da felicidade, a felicidade como produto consumível, invejável, desejável, como o corpo esbelto, festas, viagens, etc. As pessoas não têm muito o que exibir em isolamento, a não ser suas ideias (cidadania). Mas a exibição não pode ser monótona, como a oferecida pelo lar, mas dinâmica. Ou seja, os que não têm muitas ideias, são consumidos pela angústia de consumir.
Entretanto, existem as pessoas que violam as medidas de prevenção e não postam as imagens nas redes sociais. Não porque acreditam que alguém tem alguma coisa a ver com o que ela faz, ou deixa de fazer, pois em condições normais ela não perderia tempo em tirar uma selfie em um restaurante com os amigos para postar em seu Instagram, ou Facebook. Mas por saber que estão fazendo algo errado. Portanto, fazem tudo às escondidas. Na sociedade exibicionista, escondemo-nos do que antes não nos escondíamos, um processo que começou com o declínio do homem público, analisado por Richard Sennet.
Somente em dois momentos, aqui no Brasil, as pessoas violaram as medidas de isolamento para exercer a cidadania. Foi na greve dos entregadores por aplicativo, em junho/julho, e nos atos em decorrência da morte de João Alberto por espancamento no supermercado Carrefour no Rio Grande do Sul.
Provou-se que as condições degradantes de trabalho e a questão racial são elementos importantes na construção de uma cidadania plena, capazes de levar pessoas a se aglomerarem não para consumir, mas para lutar.
Isto mostra como a escravidão é extremamente marcante na sociedade brasileira. Os dois elementos que compunham o trabalho servil do nosso passado (trabalho degradante e cor da pele) mobilizaram corpos não para se exibir, mas para lutar.
Portanto, podemos concluir que a transformação em nossa sociedade passa pela questão do trabalho (uma questão de classe) e pela questão racial (uma questão de identidade). Se fundirmos estas duas questões em uma luta só, é muito provável que os alicerces da sociedade brasileira se rompam e comece o desmoronamento desta estrutura racista e esmagadora da classe operária.