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OPINIÃO
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Em 1978, o congresso do Movimento Negro Unificado, realizado em São Paulo, elegeu a figura de Zumbi como um símbolo da luta e resistência dos negros escravizados no Brasil, bem como da luta por direitos que a população reivindica.
O 20 de novembro tornou-se a data para celebrar e refletir a luta dos negros e reivindicar os direitos contra a opressão histórica e racista no Brasil.
O Brasil foi o último país da América a abolir formalmente o sistema escravagista, que durou mais de 300 anos. Também não adotou medidas ou políticas públicas de inclusão para a população que foi “liberta”. Por essa razão, o Treze de Maio, data em que a abolição formal da escravatura aconteceu, não representa a história e a luta da população negra. O chamado Treze de Maio representa uma “falsa liberdade”, uma vez que, após a Lei Áurea, os negros foram entregues à própria sorte e ficaram sem nenhum tipo de assistência do poder público.
Racismo estrutural na construção do Estado Brasileiro
Para Silvio Almeida, precisamos entender como foi a construção do racismo nas dimensões institucional e estrutural.
O racismo faz parte da história moderna, guardando relação com a formação do Estado. O conceito de raça foi desenvolvido pelo modelo do Estado burguês para eleger o sujeito universal e organizar as relações políticas, econômicas e jurídicas a partir da categorização em classes dos indivíduos com o fim de preservar o grupo hegemônico.
O racismo ganha diferentes expressões ao longo da história, desde o caráter biológico, científico e sociocultural, razão pela qual trata-se de um fenômeno social complexo. De todo modo, no Brasil, esse processo sempre esteve relacionado com a aparência física, capacidade de consumo e de circulação social.
Nesse contexto, como o Estado é responsável por formar uma unidade, o nacionalismo tende a hierarquizar as multiplicidades cultural, étnica, religiosa e sexual, criminalizando, domesticando ou estigmatizando aquele que não interessa à identidade nacional.
Nessa perspectiva, Almeida aproveita as lições de Foucault para conceituar o racismo como uma tecnologia de poder que opera por meio do controle, havendo, por conseguinte, a discriminação sistêmica de grupos étnico-raciais subalternizados.
Violência racial sistêmica
O racismo estrutural perdura até hoje. Podemos recorrer a vários índices, como o IDH, o genocídio da juventude, o grau de desemprego da população negra e o direito à cidade.
No Brasil, os casos de homicídio de pessoas negras (pretas e pardas) aumentaram 11,5% em uma década, de acordo com o Atlas da Violência 2020, divulgado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP). Ao mesmo tempo, entre 2008 e 2018, a taxa entre não negros (brancos, amarelos e indígenas) fez o caminho inverso, apresentando queda de 12,9%.
O Brasil tem mais casos de violência no cotidiano contra negros que os Estados Unidos. Considerando a população de cada país, entre 2015 e 2020, a taxa de negros brasileiros mortos pelas polícias foi cinco vezes maior que nos Estados Unidos. No Brasil, homens negros têm 77,1% mais chance de serem assassinados que os brancos, diz o Mapa da Violência. Entre mulheres negras, essa chance é 64,4% maior que a das brancas.
Apagamento da memória como estratégia do racismo estrutural
No Brasil, ocorreu ao longo do tempo uma espécie de apagamento sistemático das elaborações, articulações e organizações negras e de suas lideranças e intelectuais. É uma história em larga escala desconhecida, inclusive, por negros e por ativistas recém-chegados à pauta antirracista.
Para Sueli Carneiro, existe uma estrutura produzida para fomentar um tipo de mitologia da democracia racial brasileira e escamotear o racismo, banalizando sua perversidade cotidiana.
Enquanto nos Estados Unidos institucionalizaram um tipo aberto e violento de racismo, no Brasil os potenciais conflitos em torno da exclusão racial foram aplacados e abafados após uma abolição da escravatura que abandonou os negros à própria sorte.
Para o sociólogo Mário Medeiros da Silva, professor da Unicamp, não temos memória e não temos poder. Isto é um componente do racismo à brasileira.
Esse processo sistemático de apagamento contou no Brasil com o amparo do mito da democracia racial, amplamente divulgado pela obra do sociólogo Gilberto Freyre, que enlaça brancos, negros e indígenas na formação de um povo mestiço, diluindo discriminações e antagonismos. "Desconstruir esse mito racial foi uma luta da minha geração", fala Sueli Carneiro.
A história da luta e dos movimentos negros brasileiros é marcada por momentos cruciais. Foi assim nos anos 1930, quando a Frente Negra Brasileira (FNB), de perfil nacionalista, abrigou negros monarquistas e marxistas para disputar espaço político com as elites brancas. Foi assim também nos anos 1970, quando o Movimento Negro Unificado (MNU), de perfil marxista, aglutinou vertentes mais liberais da luta antirracista para denunciar a violência policial e a Marcha de Mulheres Negras, iniciada em 2015, cujas lideranças estão entre aquelas dos 150 coletivos, grupos e organizações que construíram, no final de 2019, a Coalizão Negra por Direitos.
Um 14 de maio que nunca terminou
O professor Hélio Santos, presidente do Instituto Brasileiro de Diversidade, fala que, na universidade, a ênfase sempre foi na luta de classes. Ele começou a observar quem eram pobres e superexplorados no Brasil. E conclui: “Existia uma questão racial com a qual só agora, no século 21, alguns poucos setores da esquerda concordam”. Santos cita os estudos do sociólogo argentino Carlos Hasenbalg que balizaram o entendimento de que, no Brasil, a cor é o principal marcador da pobreza e de sua reprodução. Santos afirma: a desigualdade no Brasil é uma questão de raça e de classe, nesta ordem. “Depois de defender, desde os anos 1990, cotas raciais nas universidades, minha meta agora é o emprego no setor privado”, anima-se, ressaltando que suas posições às vezes são apontadas como liberais demais “por não agregarem o discurso anticapitalista”.
A instituição mais duradoura do país desde a chegada de Cabral é a escravidão brasileira. Pós-abolição, não houve nenhum projeto de desenvolvimento de peso que incluísse a população negra. Parece que o 14 de maio nunca terminou. Aliás, aqui foi incentivado o branqueamento da população brasileira com a vinda dos imigrantes europeus em larga escala.
A política de embranquecimento foi impulsionada pela ascensão de ideias eugenistas, divulgadas no Brasil pelo psiquiatra Nina Rodrigues, autor de “Mestiçagem, Degenerescência e Crime”, de 1899, segundo as quais os mestiços nasceriam propensos ao crime e à imoralidade.
Dados recentes mostram que 60% das famílias que recebem o Bolsa-Família são negras. Que a cada 23 minutos, segundo o Mapa da Violência, um jovem negro morre assassinado. Que a expectativa de vida nas periferias brasileiras é de 58 anos, contra a de 75 anos nos bairros ricos. Que 60% da população contemplada com o Auxílio Emergencial o usa para comprar comida. E a maioria é negra. Pesquisa aponta que 70% dos moradores de São Paulo relatam que o racismo está de mal a pior. Que a pandemia escancarou ainda mais as desigualdades históricas brasileiras.
A saída é coletiva e a esquerda
É preciso deixar claro o fortalecimento do SUS, dos conselhos, dos movimentos sociais e culturais, para a construção de um Estado de Bem-Estar Social brasileiro. Ela começa na sua rua, no seu bairro, na sua comunidade, com seu vizinho. Um novo protagonismo surge no Brasil vindo das periferias, das arquibancadas, das motos, das vendedoras das revistas de cosméticos e da alegria do povo brasileiro.
Nessa última eleição municipal, vários coletivos foram eleitos. A maioria deles formadas por mulheres negras e periféricas, que não pediram licença para a casa grande. Elas vão encarar de frente o projeto da extrema-direita e da direita. Para as candidaturas coletivas não cabem escola sem partido, esvaziamento do Estado, das políticas públicas e nem truculência policial.
O sonho e a esperança são Coletiva!
*Rubinho Giaquinto é Covereador da Coletiva- Belo Horizonte, MG.