Em 1.988, quando comemorava os 100 anos da abolição, a Prefeitura do Rio de Janeiro fez uma pergunta: “O que Zumbi diria à Princesa Isabel?”. Faixas destacavam uma série de respostas, numa passeata organizada pela Secretaria Municipal de Educação. De “Obrigado, sua maluca”, “Já é muito tarde”, “Não valeu a pena”, “Cansei de apanhar" a “Sou grato por você libertar meus pretos. Assinado: Seu amigo, Zumbi".[1]
Como explica o historiador Robert Daibert Júnior, “há uma disputa por memória, e como se trata de uma disputa, cada um seleciona aquilo que lhe convém, a princesa Isabel ou Zumbi".[2]
O fato é que, onde houve escravidão, houve resistência. Em várias partes da América colonial, os escravos resistiram de maneiras distintas. Mesmo sob a ameaça do chicote, negociavam espaços de autonomia, faziam corpo mole, quebravam ferramentas, etc. Mas a principal forma de resistência foi a fuga. Nem sempre ela levava à formação de grupos. Em muitos casos, a fuga era individual e os escravos buscavam se diluir no anonimato da massa escrava e de negros livres.
Os quilombos, por sua vez, não têm grande prestígio com historiadores recentes. Aliás, a coletânea organizada por João Fragoso e Maria de Fátima Gouvêa sobre o período colonial não apresenta nenhum capítulo dedicado aos quilombos. Contudo, podemos observar algumas obras de impacto, principalmente quando se trata de Palmares.
Os estudos afro-brasileiros da década de 1.930 entendiam os quilombos de maneira isolacionista. As interpretações de viés culturalista, de Arthur Ramos e Edison Carneiro, acreditavam que a organização social dos aquilombados era uma espécie de resistência à aculturação sofrida pelos negros africanos submetidos às senzalas. Palmares foi apreendido pelos autores que seguiram as pistas de Ramos e Carneiro, como um projeto restauracionista, de reviver a África (romantizada) deste lado do Atlântico.
Na década de 1.950 passam a vigorar as interpretações marxistas sobre os quilombos. Palmares é novamente o foco da questão. O grupo da famosa Escola Paulista buscava combater a concepção harmoniosa da escravidão desenvolvida por Gilberto Freyre. Essa historiografia, representada por ícones da intelectualidade brasileira como Florestan Fernandes, Fernando Henrique Cardoso, Octavio Ianni, dentre outros, analisava a resistência negra como uma forma de negação do regime de cativeiro, que visava à criação de uma sociedade alternativa livre. Contudo, destaca-se a incapacidade dos rebeldes de pôr fim ao regime colonial escravocrata, já que não possuíam uma consciência de classe necessária para derrubá-lo.
Nos anos 1.980 e 1.990, os quilombos são novamente revisados. Busca-se, neste momento, combater a visão isolacionista sobre os aquilombados. A visão que predominava até então era a de Palmares, um quilombo enquanto sociedade alternativa. Mas a pesquisa documental revelou inúmeros outros quilombos que existiram e que, por sua vez, estabeleceram contato com a sociedade em seu entorno. O modelo clássico de quilombo, formado por milhares de escravos fugidos em conflito com as autoridades, de acordo com esta historiografia, tratava-se de uma minoria. Identificou-se uma consulta do rei ao Conselho Ultramarino, em 1.740, que definia quilombo como uma habitação composta por mais de cinco negros fugidos.
É preciso destacar, nesta historiografia mais recente, as pesquisas desenvolvidas por Flávio dos Santos Gomes, que chama de “campo negro” a rede complexa de relações sociais desenvolvida pelos escravos fugidos que adquiriu uma lógica própria. Conexões entre eles e o comércio da região, além de uma teia maior de interesses e relações sociais diversas, da qual os quilombolas souberam tirar proveito para a manutenção de sua autonomia.
As pesquisas empreendidas destacam também o combate contra os quilombos, já que a documentação disponível sobre tais acampamentos foi redigida pelas autoridades e muito pouca pelos aquilombados. Índios eram usados pelos agentes de repressão, além de negros fiéis recrutados para exterminar as comunidades quilombolas. Além disso, grupos de interesses disputavam as terras nas quais os acampamentos eram estabelecidos, de modo que expedições foram feitas para conquistar as terras dos quilombos. Os bandeirantes liderados por Domingos Jorge Velho, por exemplo, ajudaram a exterminar Palmares em troca de terras.
O presidente da Fundação Palmares, Sérgio Camargo, prefere o 13 de maio ao 20 de novembro. Joga no ralo toda essa historiografia que acabamos de demonstrar. Rejeita a resistência escrava autônoma chamando Zumbi de “falso herói” e exalta a princesa Isabel como a grande protagonista da causa negra.
Seu pensamento não é absurdo e tem referência no abolicionismo. José do Patrocínio era um grande defensor da abolição. Tinha inclusive uma retórica inflamada, flertando com o anarquismo de seu tempo. Criticava a princesa Isabel nos editoriais do jornal Gazeta da Tarde, declarando que a regente não tinha talento para exercer o governo pois “preocupa muito mais com as festas do carnaval do que com as angústias do país”.
Mas quando pressentiu a possibilidade de uma solução para a “questão servil" através do governo, passou a exaltar a princesa. Através do jornal Cidade do Rio, exprimia uma atitude de gratidão em relação à regente. Chamava-a de “Redentora", “espartana coroada", “alma de diamante”, “brasileira intemerata", até dizer o seguinte em 31 de julho de 1.888: “Declarada de direito a extinção da escravidão, entendi que devia ficar ao lado do governo, para vê-la realizada de fato, o que ainda não se deu, por culpa do republicanismo de relho e indenização”.[3]
Patrocínio acreditava que os senhores não deveriam ser indenizados por terem que libertar seus escravos por força de lei. Além disso, tinha fé que uma espécie de reforma agrária seria realizada pela monarquia dando continuidade ao projeto abolicionista. Para tal, criticava o reacionário Barão de Cotegipe, que defendia a indenização. Patrocínio dizia que se a indenização fosse aprovada, os abolicionistas iriam para o “campo revolucionário”. Houve então a substituição do gabinete Cotegipe pelo gabinete da Abolição, sob a liderança de João Alfredo.
Passou-se então a chamar estes indenizadores de “republicanos de 14 de maio”, pois após a abolição passaram a defender o novo regime político, e Patrocínio passou a chamar a princesa de “heroína”, “defensora" dos oprimidos. Além de ser acusado de “vendido", o abolicionista também foi denominado como idealizador da Guarda Negra, criada em meados de 1.888, constituída por negros e mulatos com o objetivo de proteger a regente, num ato de gratidão.
Mas Patrocínio era um homem que mudava de posição por conveniência e, quando proclamada a República, em 15 de novembro de 1.889, vibrou com o acontecimento. Como mostrou o historiador Humberto Fernandes Machado, “a figura da República substituiu a da “Redentora".[4]
Camargo está fundamentado em José do Patrocínio. Portanto, legítima. Ele e a direita bolsonarista acreditam que Zumbi é “uma construção ideológica de esquerda” e que a esquerda usa o “povo negro como massa de manobra" para difundir sua ideologia. Camargo escreveu em uma de suas publicações: “Herói da esquerda racialista, não do povo brasileiro. Repudiamos Zumbi!”.
Quando a esquerda cultua Zumbi, não se está cultuando o personagem em si, mas uma questão de representatividade. É a cultura negra, o protagonismo africano na história brasileira. Os quilombos representam um sistema de solidariedade, conexões, uma história de autonomia em um mundo hostil, governado por brancos.
Quando se cultua a princesa Isabel, cultua-se a cultura branca, conservadora e católica. A esquerda cultua, a seu modo, a imagem da princesa devido a sua importância para a história da mulher no país. Uma lei tão importante, como foi a Lei Áurea, ter sido assinada por uma mulher, é de fato algo que precisa ser ressaltado. Contudo, acho muito difícil que essa seja a intenção do presidente da Fundação Palmares.
É evidente que seria leviano vilipendiar o protagonismo da regente brasileira na causa abolicionista, mas a ideia de substituir Zumbi por ela é covardia, ignorância e alienação. É ver o negro como passivo e a liberdade como uma dádiva, não como conquista, o que se opõe à realidade dos fatos apresentados por diversas pesquisas históricas.
[1] FURLANETO, A. Na boca do povo. RHBN, maio, 2012, p. 32.
[2] Id.
[3] MACHADO, H. F. Encontro e desencontros em José do Patrocínio: a luta contra a indenização aos “Republicanos de 14 de maio”. RIBEIRO, G e FERREIRA, T. (Orgs.) Linguagens e práticas da cidadania no século XIX. São Paulo: Alameda, 2010, p. 304.
[4] Id., p. 316.