As elites liberais tendem a atribuir relevância a um único elemento que marcou o período Vargas: o populismo. Talvez para estigmatizar qualquer pretensão popular ao poder.[1] De qualquer forma, o certo é que, com o objetivo de denegrir a ideia de uma intervenção maior do Estado na economia, estes ideólogos escondem o fato de ter sido Vargas o criador de uma economia moral da classe trabalhadora que, embora combalida, persiste até hoje.
Após 90 anos da Revolução de 30, precisamos pensar o projeto neoliberal que tem como maior meta, a auto-regulação do mercado financeiro. Isto é, sepultar de uma vez por todas a interferência do Estado na relação capital e trabalho, a herança mais valiosa do governo Vargas.
É evidente que a política de massa adotada por governos ditatoriais da época teve o apoio das elites para conter o movimento operário em várias partes do globo. Um modelo que culminou na tentativa de Hitler em tomar a URSS (único país invadido pelo líder nazista que não encontrou apoio local significativo).
Mesmo com um programa relativamente progressista para a época, como proteção ao trabalho, criação da justiça eleitoral etc., a Aliança Liberal, movimento liderado por Vargas, não era capaz de promover uma mudança profunda na sociedade brasileira. Luís Carlos Prestes disse em maio de 1930 que “A revolução brasileira não pode ser feita com o programa anódino da Aliança Liberal". O conflito que presenciava era “uma simples luta entre as oligarquias dominantes".[2]
Contudo, após a derrota nas urnas e com a morte de João Pessoa, vice na chapa de Vargas, o interesse por chegar ao poder via armas se tornou real.
A conspiração estourou em Minas Gerais e no Rio Grande do Sul em 3 de outubro. O presidente Washington Luís foi deposto em 24 de outubro e uma Junta Provisória de Governo foi constituída. Vargas assume a presidência apenas em novembro de 1930.
Antes de 30, a palavra da identidade operária estava com os trabalhadores. A voz operária encontrava-se dividida entre comunistas, socialistas, anarquistas e corporativistas. Em 30, o Estado entra em cena e após criar o Ministério do Trabalho apodera-se da “palavra" operária.
Através da ideologia do trabalhismo, Vargas se apresenta como o representante máximo da classe trabalhadora. O trabalho é valorizado como meio de ascensão social e a dignidade do trabalhador é usada como discurso persuasivo.[3]
O novo decreto que estabelecia a lei de sindicalização “trazia as associações operárias para a órbita do Estado".[4] Nessa lógica, os sindicatos não poderiam ter nenhuma ideologia política. Num primeiro momento a classe trabalhadora reage politicamente, mas ao passar dos anos, já na década de 1940, a lógica do benefício material dado pelo Estado produz fortes significados entre os trabalhadores. Ressignificando a “palavra operária” construída ao longo da Primeira República, a lógica simbólica do discurso trabalhista, “apresentava os benefícios sociais não como uma conquista ou uma reparação, mas como um ato de generosidade que envolvia reciprocidade", explica a professora Ângela de Castro Gomes.[5]
Não se tratava de submissão, muito menos da perda da identidade da classe trabalhadora, mas de um pacto, “isto é, uma troca orientada por uma lógica que combinava os ganhos materiais com os ganhos simbólicos da reciprocidade, sendo que era esta segunda dimensão que funcionava como instrumento integrador de todo o pacto”.[6]
O Estado ao “dar" benefícios sociais irá desenvolver uma relação de autoridade benevolente, uma imagem paternal. Estabeleceu-se um princípio da dádiva. Quando se recebe algo de alguém que, por sua vez, sabe-se que não é possível dar nada em troca, o “presenteado" fica eternamente grato.
Nascia neste momento, como demonstra a historiadora Maria Celina D'Araujo, “uma nova forma de regulação das relações capital-trabalho cuja legitimidade foi garantida para além do tempo histórico conhecido como era Vargas".[7]
Esta talvez seja a última herança da era Vargas. Os trabalhadores desenvolveram uma economia moral com base no projeto de Vargas e, em suas manifestações, exigem o cumprimento da lei. A classe operária no Brasil, em sua maioria, não exige a derrubada do sistema, a queda do capitalismo ou a revolução comunista, mas o cumprimento das Leis Trabalhistas e, mais tarde, dos artigos previstos na Constituição de 1988.
Se entendermos como liberalismo à maneira como o entendiam os políticos do século XIX, poderíamos dizer que os trabalhadores no Brasil são mais liberais que as classes dominantes, pois os primeiros querem que se cumpra o que está na Constituição, enquanto os últimos travaram uma luta apocalíptica contra os direitos trabalhistas estipulados em lei, violando-os em muitos casos.
O processo de uberização da mão de obra veio para eliminar de uma vez por todas a herança mais valiosa do governo Vargas e o presidente atual seria uma espécie de inverso, já que muito se assemelha ao projeto empregado pela ditadura civil-militar que, ao invés de incluir a classe trabalhadora, procura excluí-la do debate em torno da relação capital-trabalho.[8]
[1] https://diplomatique.org.br/o-problema-do-brasil-e-o-odio-ao-pobre/
[2] Apud. FERREIRA, Marieta de Moraes. E PINTO, Sumária Conde Sá. A crise dos anos 1920 e a Revolução de 1930. In: FERREIRA, J. É DELGADO, L. A. (orgs.). O Brasil republicano: o tempo do liberalismo excludente. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008, p. 405.
[3] GOMES, A. A invenção do trabalhismo. 2 ed. Rio de Janeiro: Remule Durará, 1994, p. 11.
[4] Id. P. 147
[5] Id. P. 164.
[6] Ibidem.
[7] D'ARAUJO, M. C. Estado, classe trabalhadora e políticas sociais. In: FERREIRA, J. É DELGADO, L. A. (orgs.). O Brasil republicano: o tempo do nacional-estatismo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008, p. 215.
[8] https://www.google.com/amp/s/revistaforum.com.br/colunistas/raphaelsilvafagundes/a-economia-moral-da-classe-trabalhadora-brasileira/