Maria de Fátima mantém uma expressão de seriedade enquanto várias pessoas batem palmas e cantam “Parabéns pra você” para ela em seu aniversário de 21 anos na casa simples de seu avô em Foz do Iguaçu. Fátima, que cresceu no período da Ditadura Militar no Brasil, talvez considere que gostaria de estar em outro lugar, que não é diante de um bolo de aniversário caseiro, salgadinhos de festa e olhinhos de sogra que ela pertence. Que aquele momento, o início de sua vida adulta, aos 21 anos, é crucial para que ela escreva seu destino em seus próprios termos.
No primeiro semestre de 2020, o serviço de streaming Globoplay começou a disponibilizar, a cada duas semanas, um “clássico” da teledramaturgia da Rede Globo. Em julho, chegou a vez de uma das novelas mais canônicas não só da emissora, mas do gênero como um todo, o drama Vale tudo, de 1988, escrita por Gilberto Braga, Leonor Bassères e Aguinaldo Silva. Livremente inspirada no filme Alma em suplício (dir. Michael Curtiz, 1945), a novela gira em torno, principalmente, dos percursos paralelos percorridos por Raquel (Regina Duarte), uma mãe trabalhadora, e Maria de Fátima (Glória Pires), sua filha gananciosa.
Se o conflito central de Vale tudo não é exatamente único ou original (diversas telenovelas desde então usaram o mesmo mote como ponto de partida), a rede que os autores sustentam ao redor dessa diferença moral entre mãe e filha é o que justifica o lugar de destaque que essa narrativa conquistou na história da televisão. Ambientada nos anos entre o fim da Ditadura Militar e a promulgação da Constituição de 1988, Vale tudo coloca em cena as ansiedades políticas de uma nova democracia, demasiadamente próxima das abominações ideológicas do regime militar, em grave crise econômica, e em que é posta em questão a própria ideia do que justifica o Brasil como um país ou a identidade brasileira como nacionalidade.
Já nos primeiros capítulos da novela os autores são bem sucedidos em produzir o reconhecimento de que cada coisa tem um custo financeiro a que se deve estar atento naquele momento. A corrida de táxi, uma roupa nova, a passagem de ônibus, a casa que se vende e a que se pretende comprar, a nova mensalidade da escola de um filho adolescente, o valor de cada uma dessas coisas é nomeado pelos personagens. Um detalhe que permite que a sensação de uma crise permanente atravesse a trama.
É nesse contexto de crise econômica e uma nova expectativa política que Fátima e Raquel chegam ao Rio de Janeiro: Fátima de avião, depois de vender a casa do avô, para ascender socialmente seja através de uma carreira como modelo ou de um casamento vantajoso; Raquel, desabitada e forçada a procurar a sua filha, sob o risco de perder seu emprego, de ônibus. Eventualmente, Raquel, recusada pela filha, começa a vender sanduíches na praia para sobreviver nessa cidade nova. Com uma cesta na mão e um sorriso no rosto sua marcha pela praia é acompanhada pela música “Isto aqui, o que é?”, de Caetano Veloso: “Isto aqui, ô ô, é um pouquinho de Brasil iá iá, deste Brasil que canta e é feliz. É também um pouco de uma raça que não tem medo de fumaça ai ai e não se entrega não”.
Fátima, enquanto isso, não tem a resposta para o “isto aqui, o que é?” dada pela letra da música. Com ela, fica apenas a pergunta do título. Ela é vilã, e isso significa que sua trilha sonora não é lírica, é uma sequência instrumental que sugere uma mistura de perigo e sensualidade. Na sua tentativa de se assimilar a alta sociedade, a qual, a novela deixa evidente, ela não pertence, e na sua frustrada tentativa de se aliar ao capital, representado por Odete Roitman (Beatriz Segall), Fátima não é o exemplo desse “pouquinho de Brasil”, cantarolante e feliz, desse “pouco de uma raça”, ela é um desvio da brasilidade e um desafio à identidade de sua mãe, uma perversão de classe e uma traidora da nova nação.
Mais do que Veda, a filha interesseira de Mildred Pierce em Alma em suplício, Fátima nos lembra a ingrata Peola. Em Imitação da vida (dir. John M. Stahl, 1934), Peola é filha de Delilah, uma mulher negra e mãe viúva que trabalha como empregada doméstica para Beatrice, outra jovem mãe viúva, mas esta branca. A pele de Peola é muito clara, e assim, buscando ser reconhecida como uma mulher branca, ela renega a mãe carinhosa. Ao discutir sua relação com esse filme, a intelectual negra bell hooks fala da experiência de reconhecer a figura das “Grandes Mães Trabalhadoras” representadas por Delilah, mas se deixar fascinar especialmente pela presença de Peola, como se dirige à personagem neste trecho traduzido por Maria Carolina Morais:
“Você era diferente. Havia algo assustador nessa imagem da jovem beleza negra, sexual e sensual traída – aquela filha que não queria ser aprisionada à negritude, aquela ‘mulata trágica’ que não queria ser negada. ‘Só me deixe escapar dessa imagem pra sempre’, ela poderia ter dito. Sempre me lembrarei dessa imagem. Lembrei do quanto choramos por ela, por nossos desejos frustrados. Ela era trágica porque não havia lugar no cinema para ela, nenhum filme amável. Ela também era uma imagem ausente. Era melhor que fosse assim, que estivéssemos ausentes, pois, quando estávamos lá, era humilhante, estranho, triste. Choramos a noite inteira por você, pelo cinema que não tinha lugar pra você. E, como você, paramos de pensar que algum dia isso seria diferente.”
Tanto Vale tudo quanto Imitação da vida nos convidam a contemplar essas duas personagens por suas falhas morais e a acompanhar os seus arcos de redenção. Peola, nas suas últimas cenas em Imitação da vida, aparece chorando e pedindo perdão sobre o caixão da mãe, no suntuoso cortejo funerário, o único “luxo” que Delilah reservou para si mesma como fruto de todos os seus anos de trabalho. Conduzida por Beatrice até a limusine que seguiria o cortejo, Peola é levada a se sentar no banco da frente do carro, ao lado do motorista, enquanto a patroa de sua mãe e sua filha se acomodam no banco de trás.
Por um momento, parece que o texto de Vale Tudo tem a intenção de encaminhar Maria de Fátima pelo mesmo percurso de resignação. Depois de ser punida com o divórcio e abandonada por seu amante (e pela família do seu antigo marido) com uma criança recém-nascida, Fátima busca o perdão da mãe e a tentativa de provar para ela que é capaz de uma ação altruísta, de considerar o bem do outro antes da sua própria ambição ou senso de autopreservação. Ao fim desse processo de reconciliação e ressocialização, a novela coloca, enfim, Maria de Fátima diante de outra mesa de aniversário, agora o do seu filho, diante das velas, do bolo, dos olhinhos de sogra. E nos coloca, como espectadores, mais uma vez diante dela.
Maria de Fátima, que não conseguiu ser modelo, que fracassou em sua tentativa de ser assimilada pela alta sociedade, recebeu ali uma última oportunidade de recusa. Ela declina, uma última vez, e agora definitivamente, a nova moral brasileira representada por sua mãe. Olhamos enfim para Fátima, que não representa o “pouquinho de Brasil iá iá” de Raquel, e muito menos o poder de capital desmedido de Odete Roitman, que não é a cidadã modelo da nova democracia, mas tampouco a mulher idealizada pelo fascismo classista; olhamos para ela e vemos sua última rejeição da conformidade ao trabalho e da abdicação ao ideal do casamento.
Do fracasso de sua tentativa de se assimilar à alta classe média carioca por meio da mentira e do engano, passamos a uma invasão à aristocracia pela via do deboche dos seus valores de classe, religião e matrimônio. Quando afirmo que o final de Maria de Fátima na novela segue uma orientação queer não é apenas porque a personagem se casa, de comum acordo e contrato assinado, com um jovem príncipe europeu gay, mas também porque sua resposta ao conflito moral da mãe, à questão de uma nova identidade nacional e à sensação de crise ideológica e econômica que atravessa o país é dada com escárnio, zombaria e perversão. Esse é o corpo estranho que Maria de Fátima insere nos circuitos ideológicos do país que a própria novela, com seu uso de Raquel como o “bom exemplo” da perseverança nacional, representa.
Parece-me que seria natural se referir a esse retorno de Vale tudo ao nosso arquivo midiático (que tem ocorrido, para ser preciso, desde sua primeira exibição no canal por assinatura Viva em 2010) pensando a nossa experiência de ver, no momento de grave crise dos processos democráticos e nova ascensão do fascismo, esse produto que se insere em um período tão intermediário entre a ditadura e a democracia e que faz tantos esforços para descrever as suas dúvidas em relação a “para onde vamos a partir daqui”. De fato, os diálogos possíveis entre o texto e o atual contexto político são significativos. Novamente, porém, diante do conflito moral entre Raquel e Maria de Fátima, diante do caminho construído pela nacionalidade positiva e boa representação de Raquel, a estranheza destrutiva de Fátima é redesenhada para oferecer como resposta não simplesmente a redenção de sua vilania, mas a persistência de sua recusa.