Bolsonaro e o ateísmo conservador

Leia na coluna de Raphael Fagundes: "Bolsonaro e a elite religiosa neopentecostal que assumiu o poder estão contribuindo para dar o golpe de misericórdia em um Deus já morto (como se fosse possível matar algo que já pereceu), já a modernidade só vem cultuando os valores cristãos, não mais o Cristo em si"

Jair Bolsonaro com quadro de Jesus em frente ao Palácio do Planalto (Reprodução)
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O século XX fundou uma era de incertezas que alterou o caminho pelo qual o ateísmo vinha trilhando ao longo do século anterior.[1] As Guerras Mundiais sepultaram as convicções do século XIX.

Das cinzas dos conflitos nasce uma pós-modernidade que só atinge a maturidade na quarta parte do século, quando o relativismo e a convicção de que tudo depende do ponto de vista adotado pelo observador gerou um mundo marcado pela insegurança, como prefere o sociólogo Zygmunt Bauman, pela ansiedade existencial.

A morte de Deus já havia sido anunciada no Oitocentos, contudo (e isto indignava o filósofo Friedrich Nietzsche), os valores morais e metafísicos ligados ao cristianismo permaneceram. Sabemos que Deus está morto mas nos comportamos como se ele estivesse vivo.

O filósofo Jean-Paul Sartre esboça um existencialismo no qual constata não apenas a morte de Deus, mas o fato de que todo existencialista precisaria abandonar a moral cristã. “O existencialista opõe-se frontalmente a certo tipo de moral laica que gostaria de eliminar Deus com o mínimo de danos possível”.

Mas, na maioria dos casos, os ateus eliminaram apenas Deus, sem, portanto, causar muitos danos.

Entretanto, ao longo de uma segunda modernidade, ou seja, a que critica os feitos dela mesma, autorreflexiva, os valores cristãos foram sendo abalados, não pela filosofia niilista ou pelo existencialismo.

A mulher não baixa mais a cabeça; o casamento não deve mais se desfazer apenas por infidelidade de um dos cônjuges, como sugeriu Jesus em Mateus. Ninguém faz sexo com o objetivo de gerar mais servos de Deus (como fazem alguns muçulmanos). Inclusive, evitamos ter filhos para desfrutar o máximo da vida material. Além disso, vivemos em uma sociedade cristã que cultua a saúde e o corpo e teme, acima de tudo, a morte.

Diversos elementos morais encontrados no Velho e no Novo Testamento vem sendo desprezados pelos próprios religiosos. Daí a luta desesperada para adaptar as Escrituras ao mundo atual na velha fórmula: “usar as mesmas palavras com sentidos diferentes”.

O mercado religioso se pulveriza como os outros aspectos da vida contemporânea. Há, inclusive, pessoas que vagam entre as religiões experimentando-as, na esperança de, um dia, encontrar a que mais se adequa as suas necessidades espirituais (ou materiais).

Se voltarmos ao pensamento dos filósofos do século XIX observaremos que o problema de como a crença em Deus nasce é muito mais promissora do que se perguntar se ele realmente existe.

Alguns como Hegel, Feuerbach, Marx etc., cada um a sua maneira, observaram que Deus nasce quando o homem se vê incapaz de explicar as coisas maravilhosas que consegue realizar. Elas são tão maravilhosas que não podem ser feitas pelo homem. Assim cria-se uma entidade superior. Desde a capacidade de amar a descobertas fantásticas.

Contudo, após a Revolução Industrial, os seres humanos passaram a conviver com descobertas científicas e tecnológicas que os vislumbram dia após dia. Eles vão ao espaço e se comunicam em tempo real em qualquer parte do mundo. Esse deslumbramento, essa observação constante da capacidade humana, vai minando a necessidade de Deus.

Mas, como foi observado, vivemos em um mundo de incertezas. Essas incertezas são ainda maiores quando as promessas da democracia liberal não atendem as necessidades da maior parte da população. Os desprivilegiados (material e espiritualmente falando) passam a procurar um porto seguro que acabam encontrando na religião.

Mas não é Deus que encontram, e sim os valores morais tradicionais. É um moralismo, como explica o professor Julio Paulo Tavares Zabatiero, que “reforça o ideário moral da classe média interiorana dos Estados Unidos da América, confundindo-o com a própria ética cristã”.[2] A fé está mais nos valores que em Deus. O problema do mundo passa a ser o fato de as pessoas não estarem seguindo os valores cristãos.

Esta foi a principal forma de matar Deus. A maneira mas corajosa encontrada pelos seres humanos de sentenciar a sua pena capital. Vamos preservar os valores cristãos sem Deus! Será que sou ateu se for contrário aos valores cristãos? É possível ser cristão sem acreditar ou seguir os valores cristãos?

John Locke dizia que “aquele que não nega os ensinamentos das Sagradas Escrituras... não pode ser nem herético, nem cismático".

Sabemos que os valores mudam com o tempo. Evidentemente os valores de hoje são bem diferentes dos valores de quando Cristo pregou nesta Terra. Muita coisa mudou. Seria impossível seguir suas palavras de forma íntegra. Os próprios católicos e protestantes atuais não as seguem a risca. Não porque são desobedientes ou hipócritas, mas porque é humanamente impossível. O próprio pensamento de Jesus Cristo é parte de uma reformulação moral do judaísmo. E as reformas de Lutero transformaram os valores cristãos de sua época gerando um individualismo indispensável para o espírito do capitalismo.

A questão é a seleção. Por exemplo, do ponto de vista da direita, há uma preleção pela caça aos homossexuais e um desprezo em relação à justiça social. Uma outra preleção é pelo Deus de Davi, que reprime os que não seguem a lei, em detrimento ao perdão de Jesus que desafiou os carrascos a jogarem a primeira pedra. A partir desta seleção, percebe-se que se cultua os valores e não Deus.

Este fenômeno nos faz pensar se Deus existe em si, ou se só existem os valores. Valores estes indispensáveis para manter a ordem social. Se dependermos da nossa direita conservadora, parece existir apenas a moral, nada mais que a jaula da moral.

A direita e seus líderes religiosos nos lembram que Deus é uma alienação, já que se vai à igreja para celebrar os valores, não Deus em si. Acredita-se que se está fazendo uma coisa mas se está fazendo outra.

Bolsonaro e a elite religiosa neopentecostal que assumiu o poder estão contribuindo para dar o golpe de misericórdia em um Deus já morto (como se fosse possível matar algo que já pereceu), já a modernidade só vem cultuando os valores cristãos, não mais o Cristo em si. Bolsonaro e sua corja não são um sinal do reencantamento do mundo, mas uma consequência de um planeta desencantado.

O nacionalismo, substitui Deus, mas mantém os valores cristãos, o marxismo faz o mesmo endeusando a classe operária, o liberalismo também, substituindo o Todo-poderoso pela ideia de liberdade meritocrática e pelo mercado. Mas no fim são maneiras diversas de assassinar Deus. Ou seja, a forma mais astuta destes assassinos (oitocentistas) foi a preservação da moral cristã.

O relativismo extremado da pós-modernidade contribuiu tanto para minar os valores quanto para fortalecê-los. Não haveria problema algum nisto, se o poder político fosse relativista (como era o caso de quando a esquerda estava no poder, período marcado tanto pelo crescimento e valorização de religiões afrodescendentes quanto pelo enrijecimento do neopentecostalismo). Mas quando o governo adota apenas um ponto de vista (no sentido moral) como a verdade absoluta, problemas seríssimos podem surgir.

Enfim, em um mundo em que todos são ateus, os valores não deixam de ser perigosos.


[1] Sobre esta questão ver: MINOIS, G. História do ateísmo. São Paulo: Edunesp, 1998.

[2] ZABATIERO, J. P. T. Hermenêutica protestante no Brasil. In: . LEONEL, J. (org.). Novas perspectivas sobre o protestantismo brasileiro. 2 ed. São Paulo: Paulianas, 2010, .149

*Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Fórum

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