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OPINIÃO
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A esquerda, ávida por uma mudança social, vê revolução em qualquer coisa. A Primavera Árabe, as manifestações de 2013 etc., foram vistas como movimentos transformadores. Filmes como o V de Vingança, séries como Black Mirror e, até mesmo, o recente filme do Coringa, são aclamados pela crítica de esquerda como possuidores de um discurso revolucionário. Contudo, em nenhuma delas vemos a manifestação da consciência de classe, o que torna tais manifestações ingênuas.
Nem sempre a luta contra os ricos é revolucionária. O filósofo Slavoj Zizek fala da ausência de um teor político no filme do Coringa e que nós, os telespectadores, devemos preencher essa lacuna. Mas preencher com o quê? Se não for com consciência de classe, com o que seria?
Para o intelectual esloveno, o Coringa não pode ser comparado com Trump, o presidente valentão que transgride a lei para combater a elite corrupta de Washington. Contudo, o nosso presidente valentão, Jair Bolsonaro, transgride a lei para combater o que chama de esquerda e os valores morais pelos quais esta se dedicou tanto em defender, mais até, infelizmente, que a consciência de classe.
Deste modo, Bolsonaro se torna o palhaço sádico que assume o poder para combater os valores morais dominantes: o politicamente correto. Inclusive, a própria “estética da zoeira” que adotou durante as eleições corrobora tal ponto de vista.
Arthur Fleck, o coringa, no momento da entrevista com o apresentador Murray, afirma que existe um poder que determina o que é engraçado e o que não é, e que se ele fosse um riquinho todos enxergariam os seus sofrimentos. Ele se coloca contra uma ordem de significados, de modo pelos quais se as coisas são entendidas, não contra uma ordem econômica.
Bolsonaro faz algo parecido. Agride os significados defendidos pela esquerda liberal que preferiu a conciliação de classes ao conflito. Como o coringa, alguns desconfiam que o nosso presidente tem sangue nas mãos devido ao seu suposto envolvimento no caso Marielle Franco. Promove o caos por meio de suas falas polêmicas e do ultraliberalismo, em defesa de uma outra ordem de significados que define o que é engraçado ou não (talvez por isso muitos comediantes o defenderam), o que é justo ou não (por isso milicianos o apoiam) etc..
O discurso de Bolsonaro não é contra uma elite corrupta, mas contra a esquerda. Da mesma forma é o discurso do Coringa, não contra uma elite corrupta, mas contra um sistema de significados que o colocava fora do reconhecimento. No final, quando a multidão o reconhece, ele dança em meio ao caos, parecendo ter atingido o que realmente queria.
Daí nasce a grande questão: o caos gera consciência de classe ou a consciência de classe gera o caos? O ressurgimento da extrema-direita em várias partes do mundo é proveniente de um caos gerado pela crise de 2008 e pela crise migratória. Parece que as esquerdas trabalharam para desprover os trabalhadores de consciência, preparando o terreno para a extrema-direita quando tudo explodisse.
A Venezuela é uma exceção a tudo isto, justamente porque antes do caos, o governo bolivariano promoveu um trabalho de base importante entre a população e as Forças Armadas. A queda de Maduro está levando um tempo maior para se concretizar por vias democráticas e não democráticas.
O discurso do Coringa não é apenas apolítico, mas despolitizador, pois mostra a fúria popular sem uma consciência de classe que, por sua vez, é necessariamente política, propõe um projeto de poder claro. O nosso presidente da República tem um projeto de despolitizar a juventude, combatendo o ativismo e promovendo um modelo educacional mecanicista e bancário.
Bolsonaro se assemelha ao Coringa também no fato de produzir novos coringas, cortando gastos na assistência social e fazendo com que uma população que sofre com problemas econômicos e psicológico fique desassistida. Assim como o coringa produziu diversos coringas, Bolsonaro contribui para a criação de uma massa de desajustados, desvalidos e desprivilegiados.
A consciência de classe, a que entende que os interesses dos patrões são adversos dos interesses dos trabalhadores, precisa preceder o caos. A luta de classes precede o caos. Ela existe nos momentos em que tudo parece estável. É preciso evidenciá-la, politiza-la, para que a juventude não torne uma multidão de coringas.
Vivemos em tempos sombrios. A direita venceu no Uruguai e por vias não democráticas chegou ao poder na Bolívia. É provável que o governo argentino, que venceu as últimas eleições, não seja tão à esquerda assim. Mas é fato que se a esquerda se mobilizar como outrora, jogando a semente da consciência de classe, o sentimento de mudança real poderá brotar em solo fértil e firme.