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OPINIÃO
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O que há em Bacurau? A cidade, que dá nome ao filme dirigido por Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles, não parece estranha aos forasteiros que chegam de moto, com roupas de trilha. Para eles, o lugar é autoevidente: nada se esconde na sua arquitetura; em nada escapa, ao olhar deles, da imagem que fazem do Sertão nordestino. Para esses sudestinos (palavra tão pouco usada, sequer dicionarizada) que chegam de moto, Bacurau é uma cidade simples, um lugar que eles entendem, que eles acreditam que conhecem antes mesmo de viajarem até lá.
Eles não querem visitar o museu porque, acreditam, não há nada por lá que lhes interesse. Seus diálogos com os moradores da cidade são condescendentes, estupidamente mimetizando a simplicidade que esperam do lugar, “Quem nasce em Bacurau é o que?”, “O que significa o nome?”, “É um passarinho?”.
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É um pássaro. Ele é bravo. Essas respostas dadas articulam algo que os forasteiros ainda não conseguem entender: que Bacurau não é algum diminutivo e nem é dotada de um exotismo encantador disponível para entretê-los.
As respostas articulam uma resistência discursiva, incorporada na fala e nos gestos dos moradores, contra essa condescendência que vem de fora, que, eles sabem, não é apenas estúpida, mas racista, classista e xenófoba. Mas essa resistência, de tal modo articulada, ainda não impede que esses forasteiros matem dois homens de Bacurau que encontram desarmados na estrada.
A partir daí, as mortes em Bacurau mobilizam um arquivo da necropolítica brasileira. Em julho de 2019, no Rio de Janeiro, 194 pessoas foram mortas em decorrências de ações policiais, o maior número desde 1998.
Em abril deste ano, militares do Exército dispararam 80 tiros contra um carro, matando o músico Evaldo Rosa e o catador de material reciclado Luciano Macedo. No mesmo mês, Kauan Peixoto, de 12 anos, foi morto com três tiros, segundo testemunhas, disparados pela polícia, e levado algemado para ser socorrido. Em agosto, Eduardo Feliciano, torcedor do Botafogo-PB, foi morto no Rio Grande do Norte depois de pular um muro de estádio. Segundo seus familiares, ele foi espancado pela polícia. Também neste mês, no Amazonas, a estudante Thalia Oliveira, de 18 anos, foi morta por um sargento da polícia após a moto em que estava supostamente ter furado uma blitz (o motorista da moto diz que não havia uma blitz e nem foi feito sinal para que parassem).
A disposição fascista que reivindica a autoridade para fazer essas vítimas se mobiliza politicamente impedindo projetos de lei contrários ao abuso de autoridade e apresentando um chamado “pacote anticrimes” que, a grosso modo, legitima a violência policial.
Esse fascismo é performado em Bacurau, e a capacidade de encenar esse fascismo, de o colocar em cena, é uma das mais potentes conquistas do filme. Quando os dois forasteiros retornam à sua “base”, esperam-nos um entusiasmado grupo de homens e mulheres estadunidenses armados, tomados por uma excitação militarista, uma ode à “caçada” que, em seu discurso, vincula-se a um orgulho branco e colonialista.
Serem chamados de nazistas lhes parece ora inadequado ora um clichê bobo; e, se fossem chamados de fascistas, provavelmente lhes pareceria o mesmo. Eles apenas cumprem um exercício de raça e do império.
De Bacurau, não se entende porque fazem o que fazem. As vítimas dessa ação invasora vão rapidamente se somando. É preciso reorganizar uma resistência já articulada. A cidade convoca Lunga (Silvero Pereira), um homem de cabelos longos e unhas pintadas que é procurado pela polícia. Tira as armas do museu, de sua História. E reconstrói a arquitetura da cidade em favor da ação de resistência partisan.
Mas o filme engenhosamente não nos revela toda essa reorganização: à noite, Bacurau sai de cena como uma cidade em luto; pela manhã, já a encontramos aparentemente deserta. Passeamos com os invasores pelas ruas e casas vazias. Mas entre as paredes, por debaixo do piso, Bacurau está armada para a luta.
A ação de resistência, no entanto, não é uma que se refaz do luto para a luta. E esse é o outro ponto em que o filme é grandioso: Bacurau pronuncia o nome de seus mortos. Para além de derrotar os invasores, a cidade resiste para que possa falar esses nomes, o nome daqueles que perderam. O luto é um ponto de partida já recorrente nos filmes de Kleber Mendonça Filho.
Em Aquarius (2016), o aniversário de tia Lúcia é prenúncio de uma presença naquele prédio, de uma memória que se recusa a ser apagada, de uma ausência que insiste em se fazer sentida. Em Bacurau, a cidade é desde o início mobilizada no luto. Primeiro, pela morte de Carmelita (Lia de Itamaracá), aos 94 anos, que traz sua neta, Teresa (Barbara Colen), de volta para Bacurau. Depois, pelas mortes provocadas pelos invasores.
A injustiça e a História mobilizam a resistência de Bacurau em uma luta que não pode muito simplesmente ser dita contra o fascismo (apesar de o ser, também), mas uma luta ainda mobilizada por afetos propriamente antirracistas, decoloniais. Uma luta mobilizada por uma memória persistente da cidade, de seus habitantes, das pessoas que amaram e perderam, das pessoas que ainda amam, e essa perda dói.
Injustiça e História mobilizam uma luta armada, inevitável para que a cidade possa sobreviver e lembrar aqueles que não sobreviveram. Bacurau é um filme que ressoa junto com os nomes pronunciados no luto, dentro e fora do filme.