Primeira carta para os amigos de infância que votaram nele

Felipe Pena: “Esta é a primeira de uma série de cinco cartas que publicarei na coluna. Hoje, resgato o que escrevi há um ano, mas continua atual. Na próxima quarta, mando a segunda crônica epistolar”

Manifestação por Diretas Já - Foto: Arquivo Nacional/EBCCréditos: Arquivo Nacional/EBC
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Prezadas testemunhas, Na sétima série, turma E, Rodrigo era o mais politizado entre nós. Estávamos na época dos comícios das Diretas e a maioria dizia que o povo ainda não estava preparado para votar pra presidente. Rodrigo discordava: “Então, quando estarão preparados?”. E lá foi ele pro comício. Um pré-adolescente engajado. No canto da sala, João, tímido e observador, aos poucos tornava-se o líder que virou presidente do Grêmio estudantil alguns anos mais tarde. Naquele tempo, frequentávamos a matinê de uma boate no fundo da galeria perto do colégio. Em um espaço onde não cabiam mais de 300 pessoas, assistimos a shows da Legião, dos Paralamas e do Lulu Santos, todos em início de carreira. O país entrava na redemocratização e nós aproveitávamos o começo da liberdade, nos vários sentidos do termo. O Facebook silenciou a Fórum. Censura? Clique aqui e nos ajude a lutar contra isso Éramos felizes e sabíamos. A chuva transformou o Rock in Rio em lama, mas ninguém se importou. O público comemorava a eleição de Tancredo cantando o clássico “Pro dia nascer feliz” ao lado de Cazuza. Havia esperança. Havia fé. “Ditadura nunca mais”, gritavam as 100 mil pessoas cobertas de terra molhada. Uma multidão feita do mesmo barro, da mesma pátria que, agora, além da amada, era gentil. O dia nasceu feliz, caras testemunhas. E outros dias vieram. Nas aulas de história do professor Ronaldes, aprendemos sobre os perigos da ditadura. Ouvimos o relato de Marcelo Rubens Paiva, cujo pai fora assassinado pelos militares. Ouvimos a história da Miriam Leitão, torturada nos porões do DOPS quando estava grávida. Lemos o livro do Gabeira, uma narrativa emocionante sobre o período. E fizemos o vestibular com o direito de votar garantido pela nova Constituição. Rodrigo e João se formaram e receberam a carteirinha da OAB. Tornaram-se referência na profissão, cada um em sua área específica. Estudaram muito, conhecem profundamente a letra da lei e a importância do estado democrático de direito. Casaram, envelheceram, tiveram alegrias e tristezas, viveram as linhas tortas dessa existência. A cada final de ano, mantivemos o ritual de fazer o churrasco de meu aniversário lá em casa, junto a todos com quem convivemos na infância. À essa altura, aquilo deixou de ser meu aniversário para ser o churrasco da galera, agora com filhos, esposas e maridos. Ali, podíamos voltar no tempo, lembrar das crianças que fomos e voltávamos a ser, entre risadas e gozações mútuas, sem qualquer censura. E, às vezes, ainda conseguíamos passar o réveillon no mesmo lugar. João e Rodrigo são meus amigos, prezadas testemunhas. Porém, quero deixar claro que nunca souberam do que aconteceu na noite de 4 de outubro de 2018. Faltavam três dias para as eleições. Na minha janela havia uma bandeira de um dos candidatos. Eu estava ao lado dela, com um sanduíche na mão. A picape que passou pela rua ostentava adesivos do outro candidato. Um dos passageiros sacou a arma e a apontou na minha direção. Ele vestia uma espécie de uniforme sem marcas específicas, tinha a cabeça raspada e gritava palavras de ordem. Eu me abaixei, com medo, sem conseguir anotar o número da placa. Quando levantei, tudo já havia acontecido. Pensei na minha família, pensei nos meus amigos e em mais nada pensei. Aqueles homens foram os mesmos que vieram me buscar alguns meses depois. Eles tinham razão: sou culpado do crime de traição à pátria. Jamais deveria ter me manifestado contra o nosso presidente, nosso mito, nossa salvação. Ele é o guia da nação. O professor Ronaldes estava errado, o Marcelo Rubens Paiva é um mentiroso e a Miriam Leitão é uma comunista perigosa. Nunca deveríamos ter ido ao comício das diretas, mas fomos influenciados pelos petralhas. O Rock in Rio nunca existiu. O Cazuza nunca cantou com a bandeira. E as matinês com a Legião Urbana foram apenas uma invenção adolescente. É tudo fake news. Assim como a ditadura de 1964, outra ficção produzida pela universidade. Aos senhores, testemunhas deste processo, dou fé de que minhas palavras são verdadeiras e foram escritas de livre e espontânea vontade. Quero isentar meus amigos e familiares de qualquer responsabilidade. Atesto que todos são eleitores de nosso líder e respaldam juridicamente suas ações. Na infância, sofreram influências perniciosas, mas, como adultos, foram os primeiros a denunciar a URSAL. Se possível, digam que estou bem, a comida é boa e as instalações são adequadas. Ao amigo João, padrinho de minha filha, peço que olhe pela Maria Antonia, cujas visitas dispenso por orientações médicas. Ao amigo Rodrigo, o mais forte entre nós, rogo que proteja os mais sentimentais, como o Jaime e o Batata. Sinto falta de nossos churrascos. Mas, pelo cheiro de carne queimada, creio que meus anfitriões estão preparando uma surpresa para os hóspedes muito brevemente. Sem mais, lavro esta carta em presença das testemunhas designadas pelo Estado, reafirmando que são falsos os relatos sobre minha infância e juventude, e ressaltando a força de nossa democracia cívica, nacionalista e sem partidos. Brasil, ame-o ou deixe-o. DOPS, 27 de julho de 2020. Ass. Felipe Pena – ex-escritor, ex-jornalista e ex-professor da UFF. Avalizado e recebido por: Testemunha A: ................................ Testemunha B: ................................
*Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.