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OPINIÃO
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Desde os primórdios que o romance tende a debruçar-se sobre a vida dos estamentos economicamente superiores da sociedade, a nobreza, até o século XVIII, a burguesia, no após. O final da Idade Média, a ascensão do capitalismo a partir das navegações ibéricas, trouxeram ao proscênio da arte a nova classe. Sem os atributos mais nobres (típicos, portanto, da nobreza) ao burguês pouco interessavam as artes, a não ser como forma de legitimar sua ascensão social.
A tragédia veio no momento em que ele desancou de vez a nobreza e perdeu-se o sentido maior da arte, as aspirações do espírito humano elevado, pois ao burguês importava tão somente sobreviver e desfrutar dos parcos bens materiais, amealhados a todo custo.
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Revolução russa em diante assume o proletário o papel de protagonista, mas isso até o próprio proletário começar a obter alguma ascensão, pra se tornar o mais conservador dos seres e trazer o fascismo de volta à cena.
Da corte, tão bem retratada no romance europeu até o séc. XVIII, à burguesia, que o romance francês e inglês consagraram com Balzac e Dickens, até Victor Hugo, que redimiu a nobreza francesa, mais que a própria guilhotina, com Les Misérables, chegou-se no romance russo, que consagra a figura do povo pobre e trabalhador na Literatura. Há, todavia, uma camada social mais rasteira, que Marx batizou lúmpen, a subclasse abaixo de todos, o dalit indiano, o pobre de tudo, o sem nada, o que não influi politicamente, a última camada, a indigência. Dela se ocupe, talvez, a literatura contemporânea; Limonov, herdeiro da tradição russa, que o diga.
É este o exato foco do romance Desnorteio, de Paula Fabrio, autora fundamental para se compreender a literatura brasileira contemporânea. Vivemos um século em formação, mas já aponta no horizonte que a precarização das relações de trabalho, a decadência humana operada pelo laissez-faire elevado à sua pior potência, o neoliberalismo, a depauperação do humano frente ao corporativo, num horror histórico, trazem o miserável à cena.
O século pulula de foragidos políticos, refugiados de guerra, desempregados, motoristas de Uber, entregadores sem registro, pessoas jurídicas sem personalidade financeira, escravos com roupagem de colaboradores, toda a escatologia de uma época em que os direitos definitivamente soçobraram. Deste caldeirão caótico resta pouco além da indigência ao cidadão, e é sobre este tema que o romance de estreia da autora, vencedor do prêmio São Paulo em 2014 e agora reeditado pela Oficina (razão desta resenha), se debruça.
A história é a de três irmãos vindos de uma família que foi paulatinamente perdendo o status de classe média, proletarizando-se, empobrecendo e sendo empurrada pras bordas da sociedade, até que os últimos remanescentes decidem abraçar a indigência e a loucura, tudo permeado pela linguagem delicada desta autora que traz um facho de humanidade a tempos tão desumanos quanto os que vivemos.
Da primeira vez que li a obra veio-me uma lembrança afetiva que logo comuniquei à autora, julgando-a influenciada também, como eu era, pela leitura do Rua Descalça, de José Mauro de Vasconcelos. Paula me disse que não conhecia o livro, e ali vi que em Literatura podemos ser influenciados reversamente até pelo que não lemos de fato.
De toda sorte, dessa estreia em diante, e da amizade que entre nós nasceu por conta do livro, tenho acompanhado com interesse a prosa desta jovem mestra, que lançou na sequência um segundo romance, Um dia toparei comigo, e agora um juvenil, No corredor dos cobogós, que também recomendo vivamente.
Serviço: Desnorteio, romance, Paula Fabrio, Oficina da Autora, preço R$ 39,00.