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OPINIÃO
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Vou à Flip desde que começou. Desde a que homenageou Machado de Assis e que, creio, tenha sido uma das primeiras, senão ela, porque todos sabemos que Machadão é o nosso maior. Aos que digam que Paraty nada a ver comigo, que aquilo é uma festa pequeno burguesa pra fakes de intelectual etc., replico dizendo que é da minha conta e que vou a Paraty desde criança, cidade que amo, e que Paraty e Literatura tudo a ver. É a primeira vez que vou pra falar em mesa, e se alguém insinuar que me vendi pro sistema obtempero que estava numa mesa da programação alternativa e falando de um outsider, Sérgio Sampaio. Não faltará quem aponte um dedo acusador, Ah, mas tu tava em festinha badalada que eu vi, Ah, mas tu tava comendo crepe e tomando vinho, Ah. Problema meu.
Expostas premissas, tenho observado com muita argúcia o fato de que há uma Flip oficial e uma paralela, agora alçada a oficial também, explico: as casas alternativas, para poderem funcionar durante o evento, pagam um pedágio à organização, e constam enquanto programação. Como a oficial tem-se tornado paulatinamente mais chapa-branca, ao passo que a festa mesmo ocorre é fora dos cordões de isolamento, creio que a Flip tende a se tornar cada vez mais obra pelos atores secundários. Uma espécie de Uber da literatura, e foi assim que eu pra lá fui, por amor à camisa (de força).
Dentre as inúmeras casas alternativas, que cada ano mais conquistam o proscênio, destaco uma: a Casa Barco da Flipei, que trouxe enquanto programação ninguém menos que o jornalista Glenn Greenwald, protagonista do maior bas fond do ano, a revelação do que todo mundo já sabia, e se não o sabia é por questões de limitação intelectiva: a Lava-Jato é uma farsa protagonizada por uma quadrilha a soldo de interesses do capitalismo internacional.
Pois bem: a Flip é um empreendimento cultural/comercial. Um empreendimento interessantíssimo ao Estado do Rio de Janeiro, de tão combalidas finanças, e ao município de Paraty, adorável estância litorânea. A Flip lucra, capta recursos, cria uma festa magnífica, que mobiliza uma aluvião de turistas. Turistas estes que, enquanto consumidores, neste contrato que firmam com a organização da festa, tem seus direitos garantidos nestes tempos em que o Brasil pode até ter limpado o rabo com a Constituição Federal, mas toda biboca traz, feito uma bíblia, um exemplar do Código de Defesa do Consumidor.
Três mil pessoas, eu inclusive, se acotovelaram em frente ao Barco, na margem esquerda (coincidência?) do rio, para ver/ouvir Glenn Greenwald, Gregório Duvivier e outros luminares. Do outro lado do rio, na margem extrema-direita (coincidência?) um bando uns trinta malucos se abancou, com caminhão de som e um arsenal de fogos de artifício, e simplesmente inviabilizou a fala dos convidados do Barco que, a cada tentativa de fala, tinham suas vozes abafadas por um ruído infame de Legião Urbana com Hino Nacional em ritmo de funk. E tome foguetório. Havia policiamento na festa? Muito. Uma tropa de choque se postou ao lado dos insurgentes, como que a protegê-los, deixando ao deus dará os pobres do lado de lá, que só queriam ouvir a palestra para a qual despenderam uma grana. A direção da festa nada fez para impedir este atentado à democracia e ao direito de expressão livre, num evento pré-agendado. A polícia, instada a fazer algo, picas fez: os caras seguiram balburdiando livremente. Não contentes em causar ruído, ainda apontaram rojões ao público do lado de lá, mulheres, crianças, velhos, e atiraram sem dó, expondo a integridade física e mesmo a vida das pessoas a risco, tudo sob olhos complacentes da polícia. Um doido ainda saiu da direita e atravessou pro meio da multidão de ouvintes, bandeira do Bolsonaro em punho. Uma senhora, ao meu lado, protestou languidamente "olha só, que absurdo". Confesso, a contrário de meu temperamento amoroso, tive um surto e comecei a gritar "mata, joga no rio, dá porrada neste animal". Alguns populares fizeram coro à minha fala e o maluco voltou pro seu lado. Só isso.
O fascismo está aí, escancarado. Pessoas sem a menor formação moral, intelectual, ética e seja lá o que for se acham no direito de vir atacar quem está quieto, só querendo ouvir, por amor ao argumento, razões diversas das que o stablishment coloca. O Estado defende estas posturas absurdas. O empresariado, ali representado pelos organizadores, interessado ou ao menos alheio a tal estado de coisas, nada faz. Não há a quem recorrer? Há:
Como dito acima, nós limpamos o rabo com a Constituição Federal. O ministro da justiça é pivô de uma investigação criminosa, junto a um bando de promotores monetaristas e procuradores interesseiros e policiais truculentos. Como o cidadão brasileiro não tem a quem chorar, porque simplesmente seu status de cidadania foi irremediavelmente perdido, que reclame então na qualidade de consumidor. É a pauta de hoje. Na tevê Record, entre um pastor picareta e outro, vê-se uma enxurrada de anúncios de remédio pra ereção, drenagem linfática, bíblia com perfume, faca afiada e toda sorte de badulaque. Trata-se de uma concessão pública, mas dane-se, o esquema é esse, não somos cidadão mesmo, somos consumidor consumido. Aconselho a todo e qualquer indivíduo que tenha ali estado que processe a direção da festa, e mais a prefeitura de Paraty, e mais o Estado do Rio de Janeiro, que foi omisso na figura de sua polícia. Há direito a ressarcimento, uns caraminguás, já que é isso que a gente vale, nada de indenização milionária que nem nos esteites, nosso código do consumidor é tabelado, brazuca vale a até 40 salários mínimos. Mas está bom, tem que ser feito algo, impor dor de cabeça pra essa gente, e contar com a sorte de pegar um juiz atento aos princípios de Direito, que ainda os há, apesar de tudo.
Finalizo a crônica dizendo que um dia fui presidente de uma subsecção da OAB, fato do qual não tenho muito orgulho, mormente pelos rumos que a instituição tomou, sendo signatária daquele impeachment absurdo, que instalou o caos na nação. Saliento que admiro demais o atual presidente do Conselho Federal, figura isolada neste circo de horrores que vivemos por conta de um judiciário, mais que omisso, conivente.