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OPINIÃO
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De todos os erros cometidos por Bruno Covas na área da mobilidade, seguramente o mais grave e estrutural foi a sua atuação no processo de licitação do novo sistema de ônibus da cidade. O certame não começou na gestão Covas, e nem todos os problemas podem ser endereçados ao prefeito. Porém, é lamentável como se portou a gestão municipal sob seu comando neste último ano, alheia a qualquer vontade de melhorar o transporte público.
Leia aqui o primeiro artigo da série sobre mobilidade urbana em São Paulo
Logo no início do mandato a gestão Doria-Covas dava sinais de que conseguiria avançar com a licitação dos ônibus, que se arrasta desde 2013. Com discurso focado e o tom firme, a Prefeitura, à época, dizia que tiraria a nova licitação do papel e construiria um novo sistema de ônibus para São Paulo, mais moderno e com perfil de gestão empresarial.
Nesse sentido, a Prefeitura propôs à Câmara Municipal o Projeto de Lei (PL) 853, em dezembro de 2017. O Projeto foi modificado pelo vereador Caio Miranda, que a partir de um PL substitutivo melhorou o texto do poder executivo e construiu uma proposta para alterar a organização do serviço de transporte coletivo dividindo-o em três subsistemas e não apenas dois como funciona atualmente. Somado a isso, o PL também promovia alterações para ampliar a competitividade na concorrência da licitação e propunha modificar o sistema de remuneração e o prazo da concessão.
Esse último item merece nossa atenção. Com relação ao prazo da concessão, dizia a justificativa do PL 853, assinada por João Doria: “a previsão de prazos tão dilatados para tais contratos [fazendo referência ao prazo de 20 anos], conforme previsto na lei vigente, é incompatível com as contínuas mudanças nos tipos de transportes, de veículos, de tecnologias e de matrizes energéticas, bem como constitui óbice para que a Administração Pública correlacione de forma equilibrada os encargos dos serviços com os benefícios a serem auferidos pelos operadores e pela população usuária. Assim, é crucial a importância da realização prévia de acurados estudos técnicos para a determinação do prazo nos contratos de concessão”. Isto é, a Prefeitura estava propondo que o prazo de concessão não fosse mais fixado em 20 anos, mas sim permanecesse flexível, como registrado no documento substitutivo, garantindo um prazo entre 5 a 25 anos, definido sempre com base em um estudo econômico.
Por trás do Projeto de Lei da Prefeitura continha uma estratégia: alterar a legislação municipal de concessão dos ônibus para posteriormente avançar com a licitação das empresas. Sem nenhuma sombra de dúvida esse Projeto de Lei era o elemento indispensável da gestão Doria-Covas para a política de ônibus da cidade.
Porém, mistérios à parte, mesmo sendo a peça mais fundamental na estratégia do governo para a mobilidade em São Paulo, o Projeto de Lei substitutivo repousa nas gavetas da Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) desde dezembro de 2017. Foram mais de 30 pedidos de adiamento feitos por vereadores, inclusive, da própria base do governo.
E assim, sem nenhuma explicação convincente, a Prefeitura decidiu tocar o barco da licitação dos ônibus mesmo sem ver aprovado o Projeto de Lei de sua autoria, Projeto este essencial para melhorar o sistema de transporte coletivo.
Bruno Covas, ao assumir o governo em 2018, deu a entender que estava refém da Câmara Municipal e que respeitava a soberania do parlamento para a aprovação ou não do PL 853. Porém, soaram estranhas suas afirmações, pois o governo sempre teve maioria na Comissão de Constituição e Justiça, e não seria difícil fazer a base governista acelerar a aprovação de tal Projeto.
Em todo o caso, algumas perguntas permanecem sem resposta: por que a gestão municipal criou uma estratégia para melhorar o sistema de ônibus da cidade propondo um Projeto de Lei que lhe era peça-chave, mas posteriormente recuou do caminho escolhido, abandonou a estratégia adotada e avançou com uma licitação que vai na contramão daquilo que foi recomendado pelo próprio governo? Por que a Prefeitura, que criticava o fato do prazo da concessão dos ônibus estar fixada em 20 anos, não ouviu o Tribunal de Contas do Município (TCM), o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) e a Secretaria de Promoção da Produtividade e Advocacia da Concorrência (Seprac) quando se posicionaram sobre o processo e também disseram que o prazo era demasiadamente longo? Por que Bruno Covas ignorou os questionamentos feitos por órgãos e instituições especializadas que diziam a mesma coisa que sua gestão no passado? Se era possível ser diferente, por que assim, dessa forma, a licitação dos ônibus foi adiante tendo como prazo 20 anos?
Difícil saber os reais motivos que levaram a Prefeitura a adotar essa postura. O fato é que Bruno Covas deu de ombros para todos os questionamentos feitos ao longo da licitação dos ônibus, abandonou o importante Projeto de Lei que tramita na Câmara e que é de autoria do governo, e avançou com o certame derrubando à força toda e qualquer interpelação que era feita tanto pela sociedade quanto pelos órgãos de fiscalização e controle. Em resumo, tomou os 20 anos de prazo da concessão como verdade e seguiu em frente.
Até um dia antes da assinatura dos contratos com as empresas de ônibus a Prefeitura parecia ter acertado ao escolher o caminho de tirar no grito a licitação dos ônibus do papel, e tudo levava a crer que o certame sairia como o planejado. Porém, a reviravolta se fez na noite de quinta-feira, 23 de maio, com a publicação de um acórdão pelo Tribunal de Justiça de São Paulo decretando a inconstitucionalidade do art. 7º da lei 16.211/2015, atendendo a uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (Adin) proposta pelo vereador Toninho Vespoli.
A partir dessa decisão da justiça a fixação em 20 anos como prazo da concessão dos ônibus se tornou ilegal e tudo o que decorre dela também, como, no caso, toda a licitação dos ônibus. E a Prefeitura que já estava com uma mão no contrato e a outra na caneta teve que suspender todo o processo licitatório, e o que outrora foi surdez se transformou desespero.
Num primeiro momento a gestão Covas pensou em assinar os contratos com as empresas velozmente, antes que a notificação da justiça chegasse ao Edifício Matarazzo. Mas depois, com a cabeça no lugar, a Prefeitura decidiu suspender as assinaturas dos contratos e recorrer da decisão no Tribunal de Justiça de São Paulo.
Em entrevistas posteriores Bruno Covas deu a entender que tentará convencer o Tribunal de Justiça e fazer valer toda a licitação feita até aqui baseada num prazo de 20 anos, alterando somente os cálculos para transformar tanto os contratos quanto as propostas das empresas adequáveis para um prazo de 15 anos. Se de fato conseguir sair vitorioso dessa negociação com o Tribunal, e concluir a licitação, restará patente a contradição da Prefeitura que ora contesta o prazo de 20 anos para a concessão dos ônibus, ora a defende como o melhor modelo. Típico caso de esquizofrenia institucional.