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OPINIÃO
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Uma coisa é pôr as ideias arranjadas, outra é lidar com país de pessoas (Rosa, “Grande Sertão: Veredas”)
Mestre é quem, de repente, aprende (idem)
O tribunal que retém o direito de ser o guardião da Constituição republicana é uma instituição difícil de analisar, não porque faltem, ali, discursos para o trabalho analítico, mas em razão da sua força simbólica, quase inatingível. Em razão, pois, do seu lugar de discurso e competência atribuída.
Tal construto simbólico, no entanto, tem alcance em certas camadas sociais do país e é desconhecido pelas maiorias. Daí que falar em um símbolo abrangente é penoso, pois a sua construção exige grande empenho ético da cidadania ativa e amplo compromisso coletivo, difícil em sociedade continuamente produtora de miseráveis e excluídos de toda ordem. De fato, o lugar histórico do STF é que constitui sua alta figura política, um ícone da governança da República, embora os Tribunais da Relação e as Casas da Suplicação, ecos de tribunais superiores no domínio português, tenham tratado de grandes e espinhosos temas da nossa História.
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Não é incomum que ícones possam ser lidos socialmente como totens, embora não mitos. Os sinais decorrentes dessa posição social passam, então, a significar a totalidade dos valores das comunidades dependentes do poder totêmico, visto que este não somente explicita leis como produz repercussão geral para normas e doutrinas imprescritíveis. Neste caso, o grande problema é saber se a sociedade assim gerida porta graus significativos de homogeneidade ou é desigual, leve ou profundamente.
Portanto, visto por ângulo antropológico, entende-se que as relações sociais constituintes do modo republicano de viver, de algum modo simbolizadas na Corte, foram viradas pelo avesso quando um deputado privilegiado, na onda de irracionalidade hoje no poder, sugeriu que o fechamento do STF é algo fácil, bastando para tal um soldado e um cabo, dois militares da base da estrutura militar. Mas não só. A sugestão não foi desfeita, muito menos se fez qualquer pedido público de desculpa. Que o digam as faixas nas ruas contra a Corte, algumas enroladas à espera de melhor ocasião.
A rigor, o que ocorre é o contrário. A fala inegável contra o ícone maior se desdobra difusamente sobre todos os setores da sociedade brasileira, da toga ao descamisado. Imagine-se quem irá fechar a boca deste último: no máximo uma suposta e nunca verdadeira “bala perdida”. Como sempre, uma bala achada.
Interessa pouco, ou nada, que um ou outro ministro do Supremo tergiverse sobre o fenômeno, por desconsiderá-lo. A História está repleta dos que não viram ou sentiram os sinais, até nos genocídios. A frase que busca destruir o ícone e, em boa medida, o símbolo, desfecha seu tiro na altura constituída dos togados para facilitar a devassa nos planos mais baixos e nas planícies onde estão as gentes. Uma espécie de senha. Ela é o que se vê e se sente nos becos dos pobres, na solidão dos idosos, na família acuada, na interrogação das universidades e outras escolas públicas, no suplício do campo, na pele dos sofridos e no gênero dos violentados.
Ora, diante disso, a mera ideia de um pacto de poderes qualitativamente desiguais, ou de uma função moderadora para um guardião da face republicana da nação é mostra de desinteligência política, pois nenhum poder se salvará sem sofrimento no tempo-espaço arcado pelo ódio, pela ignorância e pela irracionalidade.
Somente a plena demonstração dos contrários dessa armação, sob altíssima mobilização social, dará sinais eficientes e eficazes contra o mal. Certamente a eficiência, aqui, nada tem a ver com discursos envelhecidos e desgastados que ainda cabe ouvir até mesmo nos microfones do STF sobre a modernidade do Estado. Ou modernosidade? Trata-se das falas carcomidas sobre as novidades dos anos bem anteriores ao início deste século a respeito do Estado mínimo e sua função comercial-arrecadadora.
Triste é que, via de regra, tais falantes se esquecem de discutir sobre os lugares indispensáveis da sociedade injusta que estão a exigir os recursos acumulados. No caso presente, cabe saber se bastaria que chegassem às mãos da autoridade que diariamente pede um trilhão de reais aos deputados a qualquer custo social, também ela a navegar em teorias e práticas já fragilizadas nos anos de 1990. Sim?
Retorne-se ao pacto, que parece estar necessariamente morto. Qualquer tentativa de reanimá-lo criará, entre os poderes de expressão simbólica em fogo morto, um campo semântico intermediário corrompido, ou inviável para a análise e o processo decisório sobre questões graves que dia a dia virão, como um suplício. Diante dele, nenhuma alma sensível poderá fazer o papel de Sísifo (que o brilhante Camus escancarou tão bem), pois teremos de acumular disposições e determinações para não repetirmos aqui o que já se dá ao norte desta América.
O senhor Trump, de um lado profere seu discurso odioso, de tópicos linguísticos fundados no calão de sua suposta “base política”, capaz de confundir e embaralhar sinais no processo de comunicação social; de outro lado, mas ao mesmo tempo, empreende a reorganização do Estado na direção de uma transposição perfeita do lugar da palavra no tópico da campanha eleitoral, isto é, em vez de América, primeiro leia-se Eu, primeiro. A anti-república. Abaixo da linha do Equador já começa a ficar claro que tanto o Brasil, quanto o Deus judaico-cristão estão abaixo da arrogância, do desamor e da ignorância desmedidas.
A condição histórica do STF e seu uso da norma culta da língua às vezes encantam ouvintes e telespectadores. É bom ver e ouvir as argumentações e as tramas hermenêuticas bem elaboradas a povoar o mundo comum, embora estruturalmente elas sejam tão inteligentes e tão analítico-interpretativas quanto a literatura de cordel nordestina. Mas seu prestígio social é incomparável, o que já aponta para o fenômeno político. No entanto, o parlamentar privilegiado, filho do presidente Jair Messias, não sinalizou a possibilidade de empastelar a produção do cordel empobrecido e sim fechar o STF. Não é, pois, o momento de esse alto lugar de poder agir menos por pactos, lautos jantares e pela impressão de que nada o alcança?
O STF é imprescindível, não pela imposição legal que o engrandece, mas por leituras inconfundíveis dos fenômenos históricos que lhe chegam às mãos para análise e resposta de amplo valor. No entanto, tempo faz que seus pronunciamentos são confundíveis com decisões que poderiam ser tomadas em qualquer lugar da sociedade, com certeza menos icônico. Tampouco faz bem aos ouvidos das gentes (as gentes interessam?) os discursos cerimoniosos que, sob vênia e até máxima vênia, revelam diante de quem os segue desvãos nunca visitados pelo outro, suposto dialogante social, assim como revelam pensamentos supostamente abertos, ma non troppo, dos senhores ministros, diálogos amortecidos, postergações do debate de temas ao sabor da conversa de gabinete, ódios similares àqueles crescentes na sociedade e a formulação de imagens (tomara nos enganemos) dos que ficam com pés em duas canoas sob a água em movimento desigual.
Todas as organizações inteligentes do país são chamadas ao mínimo consenso e, se possível, maior que o mínimo, até o limite das diferenciações, pois a mentira e a ignorância são matrizes da dinâmica social nesta terra bela, desigual e injusta. Quem não entender esse quadro e pensar que tudo está como dantes no quartel d’Abrantes, perde significação, consistência e competência. Perde valor simbólico e referência.
Não é verdade que estamos no mesmo barco. A questão é de escolha do barco.