O nacional e local se comunicam, mas há frestas no caos

Glauber Piva: “Há momentos na vida política de um país que importam muito pouco as ondas que vêm do centro: valem mais os tsunamis que conseguimos produzir a partir da margem”

Foto: Agência Brasil
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Existem vasos comunicantes entre o que acontece em Brasília e a vida nas cidades. O governo federal tem grande capacidade de reverberação, principalmente nos atos de governantes e parlamentares de todo o país. Quando um presidente da república discursa, anuncia uma intenção ou um projeto, está indicando um caminho e se oferece com uma incrível capacidade de contaminação e replicação. Não há juízo de valor no que estou dizendo. Isso é assim, inclusive, porque o federalismo brasileiro e o conectado sistema de representações e delegações institucionalizam essa reverberação a partir de Brasília. Foi assim com o Lula. Muitos (ou quase todos) governos locais adotaram políticas de combate à fome e às desigualdades, quiseram integrar o Sistema Nacional de Cultura, criaram parques públicos ou se vincularam ao Minha Casa Minha Vida. Seja quem for o governante, quando aponta uma direção faz com que lideranças políticas locais do país inteiro avaliem a pertinência daquela direção ou, simplesmente, inventem/anunciem algo que tenha parentesco com o que o governo federal estiver dizendo no momento. É preciso entender isso para que possamos lidar com a resiliência do próprio apoio ao capitão. Mas é preciso, também, fazer a pergunta obrigatória: com o Bolsonaro, o que tem sido reverberado? Para qual direção ele está apontando? O que ele fala é uma norma inconteste ou há fissuras no monolito que propõe? Saibamos: os vasos comunicantes são efetivos, mas não são absolutos. Há correspondência entre nacional e local, mas também frestas no caos para onde o Bolsonaro aponta. Não tenho dúvida de que essa narrativa imobilizadora, esse pessimismo que tenta nos conter no cubículo da vida privada, se insinua e se instala no nível da vida cotidiana. Ou seja, não é apenas o prefeito da cidade do interior que profere impropérios homofóbicos e machistas pelos cantos de suas cidades. Além deles, há o guarda da esquina, a tiazinha que faz pão para fora, o tiozinho da pipoca em frente à escola, o grupo de WhatsApp do futebol ou de pais dos amigos dos seus filhos que também repercutem absurdos contra o sistema de previdência social ou culpa os servidores públicos pelo desmonte do próprio serviço público. E fazem isso sem questionar, sem perguntar pela veracidade do que compartilham, sem nem uma racionalidade aparente. É um simples efeito manada que, com os algoritmos matemáticos e a inteligência artificial por trás de nossas mídias sociais, vai arrastando as pessoas, suas opiniões e sensibilidades. Mas isso não é absoluto: há frestas e elas são potentes. Há espaço para rebeldia, para a criatividade e para a ousadia, mesmo quando a norma nos diz para calar, para esperar e para suportar. Tratemos de um caso concreto. Fim do Ministério da Cultura em Brasília / Desmonte da Secretaria de Cultura em Sorocaba. Resistência de artistas e cineastas ao fim do MinC e das políticas para audiovisual / Articulação e resistência do Fórum Permanente de Culturas de Sorocaba (poderia ser outro exemplo, mas permitam-me falar da minha aldeia). A capacidade de reverberação do governo federal é apenas um dos territórios da dimensão estética da política. E essa dimensão estética da política trata não só do que é dito, mas, sobretudo, daquilo que é pressuposto, isto é, dos elementos extradiscursivos. Em Sorocaba, além do fato do prefeito ser daquele tipo que chama homossexuais de anormais e mulheres de vagabundas, e também além do fato de seu governo estar sob severas investigações policiais, a cidade não tem efetivas políticas públicas de cultura há algum tempo. Mas como sobreviver não é uma escolha, o movimento cultural se organizou em várias iniciativas. De saraus e feiras a fóruns, o mundo da cultura resolveu pulsar por conta própria: uma fresta no caos. Há uns dois anos, numa das salas da Universidade Federal – talvez essa tenha sido uma balbúrdia – nasceu o Fórum Permanente de Culturas de Sorocaba. Tropeçou por vários meses, mas, com a confusão recente na qual a quase-prisão do então secretário paralisou tudo, o FOPECS se rearticulou. Atualmente um monte de gente se encontra semanalmente, com metas, prazos e comprometimento. Talvez o peso do desmonte seja tal que o movimento em Sorocaba, assim como o nacional, se tornou muito mais do que uma terapia de grupo. Com feridas lambidas e luto vivido, as pessoas estão se articulando para denunciar o desmonte do país e da aldeia e, também, do horizonte: simplesmente porque estão tentando nos negar o direito à paisagem, o direito ao oxigênio e ao horizonte. Em Sorocaba o movimento cultural não tem sido exatamente de denúncia, mas principalmente de articulação e proposição. Ainda que seja também diverso e repleto de fragilidades e desafios, ao se configurar como um espaço de encontro, debate e produção coletiva de cultura e pensamento, torna-se uma fissura no monolito caótico que tenta ser o discurso Bolsonarista. José Crespo, o prefeito de Sorocaba, é desse tipo obscuro que faz eco ao obscurantismo dos que querem tornar o exercício da política uma prática miliciana. O Fórum Permanente de Culturas de Sorocaba, assim como o Fórum do Litoral, Interior e Grande SP e tantas outras iniciativas país afora podem representar essa reverberação que nasce do chão. Há momentos na vida política de um país que importam muito pouco as ondas que vêm do centro: valem mais os tsunamis que conseguimos produzir a partir da margem. Continuemos falando desses tsunamis que o campo popular está gestando em todo o país.
*Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.