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OPINIÃO
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Desde o início de 2019, participei de dezenas de eventos para debater a proposta da reforma da previdência, a partir da apresentação da PEC 6/2019 pelo governo federal. Ao longo desses debates, fomos examinando as contradições entre a argumentação do governo e de seus apoiadores no parlamento e na mídia, e tratando de dar o mínimo de racionalidade ao debate, com seus impactos sociais e econômicos.
A primeira constatação é que o tema previdência é tratado de maneira extremamente superficial e desinformativa. Não há “uma previdência” no Brasil. São várias.
Existe o Regime Geral de Previdência Social (RGPS), no qual estão inseridos, potencialmente, todos os brasileiros e brasileiras, a partir de determinadas condições, previstas na Constituição e nas leis que a regulamentam. Existem os Regimes Próprios dos servidores da União, estados e municípios. E regras específicas, na Constituição e em legislação infraconstitucional, para os militares da União (lei federal) e dos estados (leis estaduais).
O financiamento do Regime Geral está previsto como parte integrante de uma estratégia de financiamento da Seguridade Social. Os regimes próprios são financiados com recursos orçamentários de cada ente. O Regime Geral sofre forte influência da realidade macroeconômica nacional e os regimes próprios são impactados pelas conjunturas regionais. Os constituintes tiveram a sabedoria de estabelecer um sistema de financiamento flexível, a partir da vontade legislativa futura.
Hoje, todos os regimes precisam de recursos orçamentários para complementar as contribuições pessoais e patronais. No jargão do governo e da mídia, há um enorme rombo. Na nossa visão, há problemas reais que devem ser enfrentados, com uma visão social e uma correlação entre seguridade e previdência como instrumentos de Estado de inclusão e proteção.
A pergunta que repete-se a cada debate é: existe o tal rombo? Ou existe superávit? A resposta é: nem um, nem outro. Segundo o Tesouro Nacional, no ano passado, o RGPS, que inclui também os agricultores familiares, arrecadou R$ 395 bilhões. O Tesouro desconsidera que as receitas da Seguridade Social pertencem aos três pilares. Na nossa visão, é constitucional que parcela da COFINS e da CSLL sejam contabilizadas como receita da Previdência, Regime Geral. O Tesouro informa despesas de R$ 587 bilhões. Na conta simplificada e equivocada, seria um déficit de R$ 192 bilhões. É preciso rever desonerações e isenções, atualizando as regras de contribuição. E é preciso dimensionar as necessidades do SUS, da Assistência e da Previdência. É sempre bom lembrar que a crise de 2014 a 2018, com impactos da queda dos preços das commodities e reflexos da crise política, com o golpe, reduziu o estoque de empregos formais, com perdas superiores a R$ 40 bilhões por ano para o INSS.
O Regime Próprio dos servidores civis teve, ainda segundo o Tesouro, R$ 33,4 bilhões de receita e R$ 79,8 bilhões de despesas, o que daria R$ 46,4 bilhões de déficit. O Regime próprio dos militares teve uma receita de R$ 2,36 bilhões e R$ 46,2 bilhões de despesas, déficit de R$ 43,8 bilhões. A União Federal é ainda responsável pelas receitas e despesas previdenciárias do Fundo Constitucional do Distrito Federal. Foram 268 milhões de reais de receitas e R$ 5,03 bilhões de despesas, mais R$ 4,76 bilhões de déficit. É bom lembrar que o regime dos servidores civis já sofreu importantes mudanças de regras em 2003 (emenda 41) e 2013 (instituição da previdência complementar).
Portanto, somente a União, se aceitássemos a tese de que só as receitas sobre a folha seriam da Previdência, teria uma necessidade de financiamento de R$ 287 bilhões. Ou seja, a conta previdenciária federal exigiria equacionar algo em torno desse valor. Se acrescentarmos o BPC, teríamos mais 56 bilhões de reais para equacionar.
A proposta do governo é um ajuste fiscal contra os pobres e a classe média, que não enfrenta o tema do financiamento e é baseado em três objetivos:
1 - adiar: o segurado dos regimes geral e dos servidores terá que contribuir mais tempo para acessar seu direito;
2 - impedir: em muitos casos, o adiamento terá características de impedimento, pois a pessoa não conseguirá cumprir o período adicional e, por razões de saúde, incapacidade de permanecer no mercado de trabalho formal ou morte, não alcançará o direito previdenciário. Em alguns casos, será cliente da assistência social, via BPC;
3 - reduzir: as mudanças nos cálculos imporão, além do adiamento, severa redução dos valores a receber. Além disso, na proposta do governo, não haverá garantia constitucional de correção periódica dos valores.
Portanto, o governo quer atacar um problema fiscal real tirando dos mais pobres direitos que, hoje, são cruciais para minimizar as desigualdades e, em muitos casos, retirar milhões de pessoas da condição de pobreza ou miséria. Ademais, os valores pagos pela previdência e assistência impactam decisivamente o comércio, a indústria, os serviços e a agricultura. Esses R$ 774 bilhões são receita da economia popular e, em alguma medida, retornam aos cofres públicos como tributos. A pergunta decisiva é: faz sentido, num país brutalmente desigual, no qual os ricos e especialmente os mais ricos são sub-tributados, segundo os dados da Receita Federal, entregar a conta de um ajuste fiscal de 1,2 trilhão, na conta do governo, aos mais pobres e à classe média assalariada?
Essa é a estratégia econômica suicida que, a pretexto de resolver um problema fiscal e de expectativas de mercado, destrói um sistema que funciona, mesmo que precise de ajustes. Note-se que, até agora, não analiso a questão da capitalização, cuja formulação oscila entre o delírio e a mera irresponsabilidade.
Não é errado realizar mudanças de regras, desde que não seja um tipo de alteração que destrua a concepção de sistema social, contributivo e solidário, financiado pela sociedade, direta e indiretamente, como prevê o texto constitucional.
O mais importante, no entanto, para reorganizar o orçamento público de União, estados e municípios, é reestruturar a estratégia de financiamento da Seguridade como um todo. Quatro medidas simples, nenhuma requerendo emenda constitucional, podem resolver, no curto prazo, o problema fiscal, sem onerar mais que 1% da população brasileira e buscando um diálogo realista entre a questão fiscal/tributária e o financiamento da Seguridade Social.
Aí, não cabe o argumento de que a carga tributária já é muito alta. Na verdade, o Brasil é um paraíso fiscal para os 500 mil declarantes mais ricos do IRPF, entre os recebedores de Lucros e Dividendos e Rendimentos de Sócio (dados da Receita Federal). E um inferno fiscal para os mais pobres. A transição fiscal e previdenciária para um novo ciclo de crescimento e geração de empregos passa por onerar os ricos sub-tributados para equacionar o orçamento nos próximos anos e então desonerar o consumo e a produção gradualmente.
As medidas urgentes são:
- Revogar a isenção tributária dos dividendos no IRPF, artigo 10 da lei 9.249/95 e estabelecer a tributação pela tabela progressiva desse imposto, inclusive com as deduções e isenções da lei;
- Revogar a dedução dos juros pagos aos acionistas, a título de remuneração do capital próprio, artigo 9 da mesma lei.
- Revogar a Resolução nº 9, de 1992, que prevê que ‘a alíquota máxima do imposto de que trata a alínea a, inciso I, do art. 155 da Constituição Federal (ITCMD - imposto sobre transmissão por morte e doações) será de oito por cento, a partir de 1° de janeiro de 1992’. Os estados teriam liberdade para fixar suas alíquotas de acordo com a realidade socioeconômica de cada um, preservando regras de isenção e de alíquotas reduzidas.
- Estabelecer na lei do IRPF tabela de IRPF similar à dos Estados Unidos, assegurando progressividade que cumpra, de maneira cristalina, o princípio constitucional da capacidade contributiva.