Sobre (des)governar em uma democracia presidencialista multipartidária com a cabeça na ditadura

Leandro Seawright: “Não é possível governar o país repactuado em 1988 com a cabeça nos procedimentos autoritários dos regimes de Ustra, de Stroessner e de outros ditadores”

Foto: Valter Campanato/Agência Brasil
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Uma das fisionomias do governo até o momento está marcada pela aposta veemente no caos, na crise política, na instabilidade institucional fomentada. No ambiente das redes são perceptíveis as convocações de atores reais e robóticos contra as instituições. Por si, uma aposta perigosa em nome de certa luta contra o sistema. Perry Anderson, em artigo sobre um recente período da história do país, identificou nos cidadãos brasileiros a busca por estabilidade político-econômica sentida no cotidiano dos mais pobres como elemento decisivo: se não existe estabilidade, o governo sofre para permanecer e para articular. E na democracia é preciso que se reúna algumas qualidades para garantir governabilidade. Uma delas é a essencial capacidade dialógica percebida nas negociações claras com o Congresso Nacional. Negociar de forma lícita é fazer da política uma espécie de arte do diálogo. Que o bolsonarismo, dividido entre os militares e os neoliberais, faça apostas populistas nós sabemos há algum tempo: investe em certo carisma aderente às camadas ressentidas com a democracia, desgastadas pela frustração política e alinhadas ao fundamentalismo religioso; incorpora uma espécie algo intocável de “Ungido do Senhor” em moldes messiânicos. Aos poucos, a luta contra o sistema se torna uma luta contra o sistema democrático e, em última análise, contra a própria democracia e as instituições. Mas Jair tem de saber que não se governa na democracia com a cabeça no modus operandi da ditadura. Na ditadura, suspende-se a norma em nome da institucionalização de um estado repressivo e persecutório. Censura e vigilância se impõem. Dessa forma, plantam-se falsas narrativas para manipular a opinião pública; nega-se o conhecimento em clara aderência ao obscurantismo e o caos é arraigado na alma do país como atentado contra as instituições. Apelos feitos para uma parte da população são constantes, enquanto duros golpes contra os opositores do arbítrio são desferidos nos “porões”. Por meio de atos institucionais, subverte-se a norma constitucional; fecha-se eventualmente o Congresso Nacional e se demoniza a política. É bem verdade que, por outro lado, é possível corroer com habilidade a democracia por dentro, a partir dos instrumentos da própria democracia. Neste caso, porém, o processo leva tempo e requer a paciência não encontrada em pavios curtos. No Brasil vige uma ameaçada democracia presidencialista multipartidária. O sistema político do país, disse o brasilianista Scott Mainwaring em um estudo já antigo – da década de 1990 –, propicia que quando os presidentes são populares os políticos de diferentes matizes os apoiam; mas, quando perdem a popularidade, entra em cena uma dificuldade de diálogo com os partidos políticos e com as instituições. Neste caso, a dificuldade é sentida na relação entre os presidentes e o próprio partido político. As escolhas diante da crise são fundamentais para a continuidade dos governos de vernizes variados. Um erro crasso é, depois de perder o apoio político e a capacidade de negociar com o Congresso, tentar mobilizar as massas para obter mais poderes e se firmar como um autocrata ou coisa ainda mais ousada. Esta é uma fórmula fracassada na história de ex-presidentes do Brasil. Lembrou Mainwaring, ainda, que a falta de capacidade de líderes eleitos para lidar com as instituições políticas “levou um deles (Vargas) ao suicídio, outro (Quadros) à renúncia apenas alguns meses depois de uma arrasadora vitória eleitoral, incentivou outro (Goulart) a recorrer a ações erráticas que contribuíram para o colapso da democracia e tornou possível a um presidente inepto e impopular (Sarney) completar seu mandato a despeito de não dispor de condições mínimas para enfrentar uma crise severa”. É possível falar – de formas diferentes – dos impasses experimentados por Fernando Collor de Mello e por Dilma Rousseff: dois agentes políticos distintos que sofreram por questões muito distintas. Bolsonaro (e seus filhos, com quem o presidente compartilha ideias e ações) talvez esteja para cometer um enorme equívoco quando convoca manifestações. Ainda que tenha a possibilidade de mobilização de alguma massa, busca em uma parcela da população os poderes para radicalizar com as instituições. No entanto, o xeque-mate nas instituições pode não dar certo e pode ser que os efeitos colaterais se tornem incontornáveis. Porque existe um limite para um governo de redes sociais. Como explicar para as pessoas que o dólar já atingiu R$ 4,10 e a bolsa dá sinais da falta de confiança do mercado em quem ele aposta? Como explicar para os quase 14 milhões de desempregados que não existem perspectivas com as políticas econômicas propostas? A economia está quase em depressão e os estudantes continuam dispostos, e com força redobrada, contra os cortes feitos na educação; enquanto isso, Abraham Weintraub e Sérgio Moro têm muitas dificuldades na articulação política ao sofrerem derrotas seguidas. O Congresso, por sua vez, articula outra proposta de Previdência e o governo deixa de ser unanimidade em setores anteriormente propícios ao diálogo. Apoiadores como Janaína Paschoal questionam o governo. Enfim, não é possível governar o país repactuado em 1988 com a cabeça nos procedimentos autoritários dos regimes de Ustra, de Stroessner e de outros ditadores. Democracia pressupõe diálogo, negociação honesta com o Congresso Nacional e fortalecimento das instituições. A tendência de ser tratado como o “Ungido do Senhor” em quem ninguém “toca” – herança do discurso de parcelas pentecostais e neopentecostais – traz o ônus da “personalização” do governo e de mais instabilidade à vista: afinal, joga-se a oposição como inimiga do “escolhido” e o diálogo com uma parte do Centrão acaba. Ou se joga o jogo democrático ou não dá para governar... mesmo que no interior de uma capenga e jovial democracia. Referências: ANDERSON, Perry. O Brasil de Lula. Novos estud. - CEBRAP,  São Paulo ,  n. 91, p. 23-52,  Nov.  2011 .   Available from <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-33002011000300002&lng=en&nrm=iso>. access on  20  May  2019.  http://dx.doi.org/10.1590/S0101-33002011000300002. MAINWARING, Scott. Democracia Presidencialista multipartidária: o caso do Brasil. Lua Nova,  São Paulo ,  n. 28-29, p. 21-74,  Apr.  1993 .   Available from  http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-64451993000100003&lng=en&nrm=iso>. access on  20  May  2019http://dx.doi.org/10.1590/S0102-64451993000100003. Twitter e Facebook do autor: @LSeawright e https://www.facebook.com/leandro.seawright.92
*Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.

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