Ódio à democracia – nota 4

É inaceitável que minha geração entregue o país aos seus filhos numa condição pior do que a que recebeu nos anos 1980

Foto: Ricardo Stuckert
Escrito en OPINIÃO el
Esta é a quarta e última nota sobre o ódio à democracia. Tenho tratado, sob diferentes aspetos, da questão do ódio à democracia como hegemonia crescente, ou, como tenho dito desde a nota 1, como a principal religião praticada no Brasil. Sigo, porém, rodeando o problema principal: como sair do buraco no qual entramos? O fio condutor dessas notas tem sido a percepção de que esse ódio à democracia se instalou no nível da vida cotidiana e que qualquer disposição de o combater só terá sentido e êxito se for feito a partir da dimensão do cotidiano. É preciso que as lutas políticas façam sentido para as pessoas, que dialoguem com os problemas que elas enfrentam diariamente e sejam traduzíveis e compreendidas inclusive na dimensão do afeto. Pouco adiantam as narrativas totalizantes quando se está desempregado e sendo massacrado pelos signos da indústria da violência. Como falar em luta de classes, aquecimento global, desmatamento da Amazônia e geopolítica do petróleo? É claro que esses temas têm de ser tratados e dissecados o máximo possível, mas, se não voltarmos a falar com as pessoas no chão do campo e das cidades, seguiremos sendo contaminados por essa religião que desumaniza o que há de mais humano: a própria política. Encerrei a nota 3 com a seguinte afirmação: “Precisamos de grande capacidade política, articulação internacional e a compreensão de que as tecnologias digitais mudaram o mundo, desde os modos de produção de bens até os modos de produção de opiniões. Se não combinarmos política, cultura e comunicação com as possibilidades das tecnologias digitais estaremos, literalmente, fora de qualquer jogo”. Todos os dias, de alguma maneira, sofro pelos meus filhos. Às vezes com lágrimas. Noutras não. Às vezes com indignação. Noutras, resignado. Em todas as vezes, a mesma dor e a mesma inquietude: é inaceitável que minha geração entregue o país aos seus filhos numa condição pior do que a que recebeu nos anos 1980. Justamente uma geração que tanto lutou por democracia e igualdade, que conseguiu levar o país muito longe e, de repente, tudo desabou. Há alguns anos Marta Porto me ensinou que as políticas públicas de cultura só terão sentido se dialogarem com as grandes causas de nosso tempo. Mais do que a cultura, devemos reconhecer que a democracia só voltará a fazer sentido para as pessoas se dialogar com as grandes causas do nosso tempo. A questão é que não conseguiremos nos conectar ao que afeta as pessoas, ao que mobiliza as energias coletivas, se não entendermos desses modos de produção de opiniões. Há uma arquitetura da despolitização da cidadania que implementa o neoliberalismo e o neofascismo na América Latina. Ela é baseada em um mecanismo complexo de manipulação que, primeiro, escuta analiticamente os clamores sociais por meio de mecanismos de inteligência artificial para o processamento de grandes volumes de informação e, depois, coordena suas estratégias desde a nanossegmentação de sua comunicação digital até a sincronização de seu discurso repetido na mídia tradicional (1). Mas aparece o principal risco: o de reduzirmos a disputa política a um amontoado de técnicas e tecnologias. Não basta transformar o whatsapp numa artilharia, inventar um big data de esquerda, comprar robôs, boicotar ou substituir o facebook. É preciso estar conectado com as grandes causas do nosso tempo. É verdade que as tecnologias digitais mudaram os modos de produção e a maneira como nos relacionamos com as pessoas e apreendemos o mundo. Na vida prática, as tecnologias digitais alteraram a maneira de gerir empresas e cidades, substituíram funções e pessoas no mercado de trabalho, alteraram os territórios da infância, inventaram novas modalidades esportivas e volatilizaram nosso talento à empatia. Até onde se percebe, o resultado é direto: ampliação das dimensões da vida privada e redução das percepções da esfera pública. Por isso é importante combinar as tecnologias digitais com três dimensões da mesma luta: política, cultura e comunicação. O exercício da política tem de se dar nas ruas, com as pessoas, debatendo e mobilizando por moradia de qualidade e cidades inclusivas; livre expressão e direitos humanos; recuperar a dimensão pública da educação com autonomia de educadores e educandos; saúde pra todos e todas, sem exceção nem condições; combate à violência e respeito aos seres humanos; proteção da biodiversidade e compreensão de sua perspectiva econômica e humana; reconhecimento efetivo das causas e protagonismo de crianças, negros, mulheres, indígenas, LGBTI; segurança alimentar com combate à fome etc. etc. São muitas possibilidades que nem cabem aqui. Também precisamos entender de nossa cultura. Segundo Marilena Chauí, “para a esquerda, a cultura é a capacidade de decifrar as formas da produção social da memória e do esquecimento, das experiências, das ideias e dos valores, da produção das obras de pensamento e das obras de arte e, sobretudo, é a esperança racional de que dessas experiências e ideias, desses valores e obras surja um sentido libertário, com força para orientar novas práticas sociais e políticas das quais possa nascer outra sociedade” (2). Ponto. É difícil acrescentar algo além do que disse Marilena. O tema da comunicação, por sua vez, vai muito além do jornalzinho do bairro e do próprio jogo eleitoral (que, para muitos, é o que existe de mais importante: não deveria ser). Já entendemos qual foi o jogo que a direita fez em 2018 e já sabemos quem é Steve Bannon, suas motivações e quais são os interesses do capital internacional no Brasil (ver nota 2). O que não sabemos é qual é a disposição do campo popular em jogar o jogo para valer. Desde o ponto de vista dos desafios comunicacionais, infelizmente, os projetos políticos do campo popular deixaram de subestimar a dimensão técnico-comunicacional dos processos políticos para superestimar a capacidade da direita nesse campo. Passamos da negação à impotência. É preciso reconhecer que nunca articulamos pra valer um projeto de comunicação que, de fato, se comunicasse. Apesar das centenas de jornalistas e jornalismos progressistas de partidos, movimentos, associações e sindicatos, nunca estivemos no mesmo projeto, nunca nos coordenamos. E seguimos assim: é só ver o comportamento nas bancadas legislativas, por exemplo, nas quais assessorias de vereadores e deputados do mesmo partido ou, melhor seria, do mesmo campo popular, disputam a irrisória visibilidade que alcançam. Visibilidade, aliás, que é minúscula justamente por ser gerada a partir de ações desconectadas do que interessa às pessoas. Mas, por outro lado, um dos potenciais que ainda temos é a enorme capacidade de nossos profissionais em ciência e tecnologia. Tem muita gente absolutamente bem preparada que, por razões diversas, está à margem dos projetos políticos do campo popular. Além disso, outro potencial que temos são nossas raízes identitárias e históricas que podem permitir uma consciência fraterna por toda a América Latina. A amiga argentina Maria Fernanda Ruiz costuma falar também do potencial de “nossa tradição em uma educação libertadora, nossa pedagogia da esperança”. Lula é o Lula não porque tem o timbre de voz que todos conhecemos, mas porque o que ele sempre disse ainda faz sentido para as pessoas. Ele sempre foi, e continua sendo, uma espécie de profeta de uma esperança solidária. Ou não é isso que faz dele a grande referência política do Brasil? Nosso comportamento político não terá sentido para as pessoas se não desenvolvermos essas potencialidades em uma ação formativa, organizacional e organizada. Nas últimas décadas o progressismo latino-americano semeou projetos políticos como nunca antes na história do nosso continente, com direito à valorização da autoestima, reivindicação dos direitos humanos e democratização da palavra. Ainda hoje, ainda que precisando ser amplificada, essa palavra circula no território próprio do campo popular: bairros, ruas, organizações políticas, mídia popular, universidades, sindicatos etc. Assim como circula nos movimentos culturais e que lutam por direitos. Essa gente que promove o ódio à democracia não suporta essa democracia de verdade: ela tem gente demais, ela é ruidosa demais, ela é real demais. De nossa parte, então, temos de recuperar a dimensão democrática da política. Devemos expandir essa palavra de nossa gente para a territorialidade da comunicação digital e, também aí (mas não apenas aí), fazer a disputa pelo sentido das coisas. Cuidado! Não é apenas no ambiente digital que está a disputa pelo sentido das coisas. Mas nele também. O ambiente urbano, ainda que terrivelmente deteriorado, ainda que contaminado pela lógica do crime organizado e da superexploração da fé, é o local por excelência de disputa de sensibilidades. Por isso devemos praticar a cidade e assumir uma postura sensível frente ao urbano (3). Por isso devemos recuperar a dimensão democrática da política e a dimensão democrática do campo popular: sem preguiça, sem pressa e sem parar. Nas ruas e nas redes. (1)Já tratei disso em artigo anterior: “Ajuda humanitária para quem?” (2)CHAUí, Marilena. “Cidadania Cultural: o direito à cultura”. São Paulo: EdFPA. 2006 (3)MEDEIROS NETA, Olivia Morais. “Por uma pedagogia da cidade: espaços, práticas e sensibilidades”. Holos (Natal. Online), v. 5, p. 105-115, 2016. Disponível em: <http://www2.ifrn.edu.br/ojs/index.php/HOLOS/article/view/4683/1555>.
*Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.