Jair Bolsonaro como um predador institucional

No dia em que o governo brasileiro, com apoio da elite econômica, resolveu comemorar a véspera do golpe de 64 (o golpe foi em primeiro de abril), a primeira coisa que li ao acordar foi este texto extremamente lúcido e por isso mesmo assustador de Bruno Wanderley Reis, destaca Fernando Lara

Foto: Valter Campanato/Agência Brasil
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Por Bruno Wanderley Reis* Institucionalização política envolve, em termos bem fundamentais, organização popular na base do sistema político e fixação de rotinas e procedimentos no topo, visando à impessoalização do exercício do poder político e à mitigação da força bruta do poder econômico sobre o processo decisório. Naturalmente, diferentes facções discordarão entre si a respeito do conteúdo e da orientação política dessas rotinas e isso constituirá o cerne de nossas disputas em ambiente democrático. Tucanos são limitados em sua capacidade de organização na base, mas os mandatos de FH produziram novas normas, rotinas e procedimentos em variadas áreas da administração; os governos do PT se apropriaram deste legado e deram-lhe rumos próprios, mas continuaram a construção institucional iniciada com a transição dos anos 1980. O bolsonarismo não faz outra coisa senão desmantelar, de modo obstinado, tanto a organização popular (o ódio aos “ativistas”) quanto os procedimentos no topo, removendo qualquer embaraço ao exercício bruto e desregulado das assimetrias naturais de poder existentes na sociedade – da livre posse de armas até a capitalização de contas individuais na previdência, passando pela liberação de agrotóxicos e todo um vasto repertório de medidas análogas, encetadas desde os primeiros dias da administração. É uma visão que concebe o Estado, as leis, os procedimentos impessoais, como os inimigos de uma ordem “natural” das coisas – que, como é óbvio, não estará muito distante da lei do mais forte pura e simples. É uma mentalidade miliciana que vai bem além da ocasional vizinhança num condomínio e das fotos em confraternizações sociais. Não é casual que Flávio Bolsonaro pareça jamais ter feito outra coisa como deputado estadual senão proteger as milícias. Trata-se de efetiva afinidade no compartilhamento de uma visão de mundo, de uma (por que não?) ideologia, segundo a qual a lei e os dispositivos constitucionais são óbices indevidos ao livre uso de seus poderes por aqueles que acreditam poder dispor materialmente deles para fazer o que lhes der na telha e depois chamar de justiça. Incluídos, naturalmente, os “justiçamentos”. A crise que se iniciou em 2013 deixou cambaleante o sistema político, à mercê do predador, que agora tenta liquidar sua presa pelo ataque ao que resta das instituições (“velha política”) com apelo direto às massas por lives e tweets. Mais adiante, cedo ou tarde, esses abusos serão contidos. Mas vai levar tempo, vai ser penoso – e, até lá, décadas de decantação institucional serão revertidas, praticamente zerando o esforço por um combate estável à corrupção. O que acontecer nos próximos anos irá definir a forma como o Brasil, daqui a algum tempo, pensará nos dias de hoje. Se os desacertos de Bolsonaro produzirem basicamente um governo fracassado em um país estagnado, é possível que seu mandato se torne um efetivo “fundo do poço” seguido de relativa recomposição política. Neste caso, é provável que nos reportemos aos últimos anos como os americanos se relacionam com o macartismo: um misto de ultraje e embaraço de contar uma história suja para as gerações mais novas. Se, porém, as lideranças políticas insistirem por mais tempo na mera desqualificação mútua, a antipolítica fincará raízes sempre mais fundas, empurrando-nos para alguma atualização do caminho amargo trilhado, por exemplo, por italianos, alemães, espanhóis, portugueses e tantos outros povos no tempo de nossas avós. No que depender dos sonhos de Bolsonaro, está claríssimo que ele flerta com uma reedição da estratégia chavista de assédio plebiscitário às instituições. *Bruno Wanderley Reis é professor de ciência política da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG)
*Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.