Escrito en
OPINIÃO
el
“a força da grana que ergue e destrói coisas belas” (Caetano Veloso)
A pergunta a responder é: a quem interessa a bestialidade dos Bolsonaro? A quem interessa o desmonte do país? A quem interessa o elogio da maldade como prática aceitável?
A resposta a estas perguntas é mais importante do que tentar adivinhar até quando Bolso pai se segurará na cadeira, ou quais as intenções de seu vice. A quem interessa as imbecilidades e idiotices ditas e praticadas à exaustão, sempre na mesma direção: alimentar o ódio à democracia, a principal religião praticada no Brasil? Caetano já respondeu, mas agora é preciso tentar entender.
1)Como já dito na nota 1, a principal religião praticada atualmente no Brasil é o ódio à democracia. Essa prática religiosa (esforço humano e coletivo para se religar a uma força maior e transcendente) não é casual e serve a interesses dispostos a enfraquecer as instituições do país para normalizar a atuação de milícias de todo tipo: virtuais, paramilitares e de “colarinho branco”, ou seja, aquelas que assaltam a coisa pública enquanto os cidadãos de bem desmontam os órgãos de controle e fiscalização.
2)Relembremos. A independência brasileira se deu sob a liderança dos setores dominantes ligados à terra, aos negócios e altos cargos, garantindo, assim, a sobrevivência da estrutura colonial de produção.
3)Os principais objetivos desses setores eram organizar o Estado independente sem colocar em risco o domínio econômico e social que já tinham e garantir as relações externas de produção (1). Por óbvio, a produção colonial era constituída e organizada em função da produção de um excedente a ser levado à metrópole, mas gerido por proprietários que mantinham laços econômicos e familiares com as forças políticas e que, portanto, constituíram uma verdadeira oligarquia depois da independência, integrando, inclusive, todos os escalões governamentais da época.
4)Dois séculos se passaram e o mesmo quadro se repetiu várias e várias vezes. Sempre a mesma lógica de uma sociedade de elite que importa elementos do liberalismo sem permitir as condições internas correspondentes para isso. Nunca fomos liberais, mas mantivemos esse verniz para nos vender como modernos. Nunca completamos a lógica de acumulação prevista no liberalismo, mas sempre expatriamos os excedentes, seja em forma de remessa de lucros a multinacionais, seja privatizando as empresas públicas. A sociedade de elite que temos hoje é derivada das mesmas práticas da sociedade colonial escravista.
5)O importado arcabouço ideológico que fundamentou as instituições políticas brasileiras é produzido em sociedades e condições muito diferentes das nossas, com estágios de desenvolvimento também diferentes daqui. Isso contribuiu para a produção da ideia da incapacidade da sociedade brasileira se desenvolver econômica e politicamente e, por isso, elogiarmos tanto o que é estrangeiro. Talvez seja o que Nelson Rodrigues chamou de complexo de vira-latas.
6)E por que isso necessariamente interessa a alguém? Primeiro, precisamos esquecer a falsa dicotomia velha/nova política. Isso é bobagem inventada por comunicadores que precisam nos vender um inimigo e canalizar nosso rancor. Daí achamos que Sarneys, Jucás e Renans são a velha política e Maias, Alcolumbres e Dorias são a nova política. Bobagem. Isso é uma grande bobagem. Follow the Money. Isso. Siga o dinheiro.
7)Esses caras são apenas representantes de interesses maiores do que eles. Servos dos mesmos que ganharam muito com a privatização e transnacionalização do pré-sal, por exemplo. Uns vão, outros vêm e os interesses continuam sendo representados aqui. A questão do ódio à democracia, portanto, está no aniquilamento da possibilidade de diálogo democrático.
8)A democracia se dá nos processos, não nos resultados. Um país que interdita o debate não é democrático, mesmo que tenha eleições. Um país que nega educação, nunca terá eleições livres, simplesmente porque seus eleitores, por absoluta incapacidade de decidir com autonomia, jamais votarão livremente.
9)Vale lembrar que a luta pelo direito de voto foi longa e sangrenta. Uma luta democrática, mesmo antes do estabelecimento do sufrágio universal. Simplesmente porque os donos do capital, ou melhor, os donos dos meios de produção, não queriam que os trabalhadores e trabalhadoras, ou seja, os donos da força de trabalho, pudessem participar das decisões.
10)Esta luta só experimenta um processo de ampliação após uma sequência de exigências populares e de lutas travadas nos mais variados âmbitos. O sufrágio universal nunca foi decorrência natural da democracia. A sangrenta história da reforma eleitoral na Inglaterra, por exemplo, é apenas um dos casos capazes de expor a hipocrisia das elites por trás do conceito de igualdade. Eles apenas a defendem quando elas próprias se beneficiam.
11)Historicamente, a democracia nasce como um sistema que supera a lógica dos sistemas políticos anteriores que garantiam a legitimidade de seus governantes a partir de dois tipos de títulos: nascimento ou riqueza. As monarquias, as teocracias e as oligarquias estão lastreadas por esses princípios.
12)A democracia nasce a partir de um valor diametralmente oposto. Ela não nasce fundada na lógica dos governos, mas na possibilidade desses governos estarem nas mãos de “qualquer um”. E esse qualquer um pode ser um operário, um trabalhador do campo, um professor ou uma mulher. E isso é insuportável para nossa sociedade de elite que comporta oligarquias e elogia impérios.
É importante aceitar que a democracia pela qual lutamos nos anos 1960, 1970, 1980 e 1990 já não existe mais. Nem no sonho, nem nas instituições. O cristal quebrou e ainda não sabemos como colá-lo. Mas nós teremos de encontrar um jeito.
Quando lutamos pela democracia, antes e depois do regime militar, estávamos lutando por mais povo na política e por um sistema político que sabíamos que seria sempre inconcluso, sempre exigindo ampliação e retomada da esfera pública, sempre nos convidando à disputa de sensibilidades e nunca um sistema dominado pelos mesmos poucos de sempre. Mas o discurso corrente hoje é o contrário dessa luta. A política se transformou numa externalidade: ela não sou eu, ela não está em mim, ela não é para os meus, ela é suja, ela é dos sujos etc. etc. etc.
O país só pensa isso porque nos foi feito acreditar nisso. É para isso que serve o big data, o Jornal Nacional, os filmes de guerra pela democracia feitos nos Estados Unidos, o desprezo pelo cinema brasileiro que fala do Brasil e dos brasileiros - mais uma vez escancarado pela interdição da Agência Nacional do Cinema (da qual tive a honra de ter sido diretor entre 2009-2013) -, as alianças Globo/militares e Record/Igrejas evangélicas e as repetidas mentiras contra a economia e as empresas brasileiras. Ou você realmente pensa que o que se contou sobre a Petrobras era verdade e não tinha zilhões de dólares por trás desse conto da carochinha?
Nos atuais tempos de desorientação da esquerda, quando resistência e solidariedade são substantivos extraordinários, é preciso saber que só existe a política porque a economia não é o todo que comporta a vida e, portanto, há um paradoxo a se enfrentar.
“A democracia não é nem a forma de governo que permite à oligarquia reinar em nome do povo nem a forma de sociedade regulada pelo poder da mercadoria. Ela é a ação que arranca continuamente dos governos oligárquicos o monopólio da vida pública e da riqueza a onipotência sobre a vida” (2).
Os articuladores e financiadores do bolsonarismo tentam subordinar os poderes e narrativas a uma única e mesma lei de dominação. Eles odeiam a democracia porque ela é real demais, ela comporta gente demais, ela suporta dissensos demais. Por outro lado, a democracia é a potência que, hoje mais do que nunca, deve comportar a luta de quem está disposto a reivindicar o próprio direito a ter voz e interromper as sombras do silêncio.
(1)Ver Emília Viotti, “Introdução ao estudo da emancipação política” (1968), in MOTA, Carlos Guilherme (org.). Brasil em Perspectiva. São Paulo: Difel, 1982.
(2)RANCIÈRE, Jacques. “O ódio à democracia”. São Paulo: Boitempo Editoria, 2014.