Mulheres duronas e outras fórmulas hollywoodianas: Marvel, DC contra o fascismo moral

“A ascensão da extrema direita faz parecer que a culpa é dos conservadores e não do modo de produção capitalista que é racista, machista e poluidor por natureza”, diz Raphael Silva Fagundes, em novo artigo

Foto: DC Comics/Divulgação
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“Estar contra o fascismo sem estar contra o capitalismo – ou rebelar-se contra barbárie que nasce da barbárie – equivale a pedir um pedaço de bezerro sem sacrificá-lo”. (Bertolt Brecht)  Mulher-Maravilha, da DC Comics, foi muitas vezes associado ao empoderamento feminino, à mulher forte que luta para conseguir concretizar seus desejos, seus ideais. A Marvel, por sua vez, lança na véspera do Dia Internacional da Mulher o filme Capitã Marvel. Esses modelos de mulher parecem servir de paradigma para as lutas feministas em todo o mundo. Trata-se de uma nova forma de dominação imperialista que busca calar a lógica local, as maneiras de lutas imanentes da realidade social do lugar. O indivíduo que entra em contato com esse tipo de filme acaba por esquecer as circunstâncias locais que geram o conflito, sendo convencido a se aliar a uma maneira específica, que por sinal é muito conivente aos interesses do capital. A cidadã da periferia de São Paulo acaba por achar que o machismo que sofre é o mesmo que de uma atriz de Hollywood, esquecendo os aspectos de sua classe, as agonias da sua realidade cotidiana, da história local, do meio ambiente que vive etc. O feminismo apropriado pela classe média é muito útil. É uma forma de ser rebelde sem ser revolucionário. Como demonstrou Slavoj Zizek, a luta feminista busca a convivência pacífica com o seu oposto, já a luta de classes procura a aniquilação do seu oposto, embora a primeira possa ser inserida na segunda. Mas não seria útil para a dominação burguesa. Por isso, o melhor a fazer é separar essas lutas. O mesmo ocorre com filmes do tipo Pantera Negra. Não é uma maneira de negar a história dos verdadeiros Panteras Negras e determinar uma maneira legítima, “politicamente correta”, de enfrentar o racismo que ainda persiste na sociedade ocidental? Mais uma vez Zizek nos ajuda nessa questão: “Seguindo a trilha do quadrinho original da Marvel, o filme – que jamais menciona diretamente os verdadeiros Panteras Negras – em um simples, mas nem por isso menos magistral, toque de manejo ideológico, na prática se apropria do nome original de forma a fazer com que ele reverbere menos a histórica organização militante radical e mais o rei-super-herói de um poderoso reino africano fictício”. O discurso de Aquaman, último filme inspirado nos heróis da DC Comics, por seu turno, é muito interessante. O irmão de Arthur quer promover uma guerra contra o povo da superfície com o discurso de que o ser humano é o grande vilão, poluidor dos mares etc.. Para tal promove uma política imperialista que destrói os outros clãs que vivem no fundo do mar. Lembra o que os EUA fazem com o discurso de luta pela democracia. Trump é o rei fascista dos oceanos quando quer invadir a Venezuela em nome da democracia, ao mesmo tempo em que elogia o ditador da Coreia do Norte, Arábia Saudita e manipula a política golpista brasileira. Outras nações aliaram-se a ele, assim como na película os clãs marítimos aliaram-se ao déspota. Contudo, esta é certamente uma interpretação que Hollywood não quer que tenhamos, pois a esquerda de lá é completamente contrária ao governo de Maduro. Aqui no Brasil usa-se o discurso do combate à corrupção para destruir o povo. Em uma perspectiva local, o rei fajuto lembra Bolsonaro. Arthur, o aquaman, representa a esquerda norte-americana (e a brasileira também), a conciliação entre pobres e ricos (o pai de Arthur é um faroleiro, enquanto a mãe é uma rainha) e a ideia de que a destruição do meio ambiente não tem um responsável, mas sim que todos tem um nível de culpa. Nem mesmo a Chevron e a Shell possuem responsabilidade. O diretor poderia ter trabalhado melhor uma das cenas do filme em que um dos soldados de Atlântida - que por não ser nobre não tinha a habilidade de respirar na superfície -, quando teve seu capacete destruído por um dos heróis do filme, usou a água da privada para poder respirar. Poderia haver aí uma crítica, já que os dejetos humanos lançados na latrina têm como destino o mar. Mas vamos dar a nossa interpretação subversiva mais uma vez. Podemos chegar à conclusão de que ideias defendidas pelo rei nefasto (ideias imperialistas) que comandava aquele soldado, são os verdadeiros poluentes dos oceanos, como a merda que jogamos na privada. Entretanto, o conflito contra o império é a última coisa que os cineastas de Hollywood não querem representar, mas sim a conciliação promovida por um sangue nobre. Vemos isto no Aquaman, no Pantera Negra e na Mulher-Maravilha. É a partir daí que se promove a união entre o povo do mar e o da superfície. A mulher negra da periferia e a de alta classe que ganha Oscar. O discurso é liberal: todos são capazes de vencer ao se dedicar. Mas não é assim que funciona a violência racial, machista etc., ela é proporcional a sua condição social, assim como os pobres são os mais afetados pela poluição dos mares e do meio ambiente de modo geral. Contudo, o discurso de uma esquerda reacionária que não contesta a dominação capitalista, e que apenas busca amenizar os seus males, luta contra um fascismo moral, isto é, desvencilhando o racismo, o machismo etc., do liberalismo e do capitalismo. A ascensão da extrema direita ajudou a pensar e a reproduzir esse raciocínio. Ela faz parecer que a culpa é dos conservadores e não do modo de produção capitalista que é racista, machista e poluidor por natureza. Dessa forma, os liberais conseguem controlar a revolta contra o sistema, revolta que seria anticapitalista, pois sem a ascensão do fascismo moral, a exploração econômica ficaria exposta, como esteve até 2013. A primavera conservadora ajudará no fortalecimento do pensamento liberal, de modo que a esquerda irá unir-se (coisa que já vem fazendo há um tempo) às pautas identitárias que são também liberais, filosoficamente falando. Somente nesse contexto pode surgir um socialismo nos EUA. Um socialismo liberal que flerta com as visões progressistas dos jovens magnatas do Vale do Silício e da megacorporação que é Hollywood Sem dúvida é uma perspectiva instigante, mas a esquerda deve abordar as questões identitárias sem deixar de lado os aspectos relacionados à luta de classes. Aliás, eles devem ser prioridade.

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