Escrito en
OPINIÃO
el
Quando se perde a capacidade de imaginar o futuro, perde-se a capacidade de conectar a política com as grandes causas do tempo e a transformamos numa ação entre amigos, num amontoado de tecnicalidades e malandragens com razões privadas. E, dizendo de maneira solidária e responsável, entendo que é preciso reconhecer que a capacidade das esquerdas brasileiras de imaginar o futuro foi sequestrada pela realidade. E isso nos deixa afônicos.
O que se tornou o exercício da política brasileira hoje senão a negação silenciosa das utopias, ou, dito de outro modo, a total incapacidade de se imaginar o futuro, resultando no império da banalidade e da idiotia? A direita brasileira tem ganho a disputa de narrativas porque sua mensagem é clara: ela sabe o que dizer, ainda que sejam absurdos. E nós, que sempre fomos a artilharia do combate à desigualdade e pela participação política, nos recolhemos. Como se fossemos jogadores em final de carreira, perdemos o ritmo do jogo e o tempo de bola. Seria correto perguntar, neste caso, como pretendemos liderar os processos políticos se “o futuro está em crise e todo o projeto coletivo desmoronou e suscita a desconfiança”? (1)
Quando digo que perdemos a capacidade de imaginar o futuro, estou falando que as proteínas do nosso discurso e de nossa ação são incertezas e inseguranças. Nosso discurso faz pouco sentido para as pessoas. Elas pouco conseguem enxergar os partidos e seus partidários sem que o olhar delas seja barrado pela densa cortina de despolitização que o ódio à democracia construiu. E, divididos, quem somos? O que pensamos sobre o crescimento do suicídio entre os jovens? Como entendemos e atuamos em meio ao crescente constrangimento do espaço público nas cidades? Qual o papel da diversidade cultural no fortalecimento da consciência de classe?
Não há política possível se a capacidade de imaginação for anulada e, junto com ela, anulada também a possibilidade de metabolizarmos socialmente o dissenso. A morte do futuro é a morte da política, simplesmente porque o que funda a Política é a possibilidade de nos desentendermos sobre o rumo das coisas que dizem respeito a todos e todas e, ainda assim, seguirmos construindo alguma coisa. Será que o PT, o PCdoB, o PSOL e outras forças e movimentos, quando estabelecem planos e estratégias, quando definem suas direções, quando convidam jovens à filiação, têm capacidade de projetar a narrativa política para além dos seus círculos e da desinteligência bolsonarista, da criminalização dos políticos ou do golpismo do lavajatismo? E, quando têm essa capacidade, qual é a eloquência de suas intenções?
Pode parecer óbvio, mas não avançaremos se estivermos subjugados pela imobilidade do próprio tempo e em constante negação das sombras do passado e do futuro. Alguém já disse que a hegemonia capitalista é tão densa que é mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim do capitalismo. O que isso quer dizer? De que maneira isso nos tira da cama? O que isso impõe aos próprios partidos políticos e movimentos sociais? Ou, de outra forma: o que os sindicados, por exemplo, atacados violentamente pelos servos do grande capital, têm a dizer sobre as dores e alegrias dos pais ou filhos dos trabalhadores de sua corporação?
A criminalização da política no Brasil é apenas parte de uma grande e volumosa catástrofe que desumaniza o próprio movimento da história e faz com que as esquerdas, forças políticas que são portadoras de um novo futuro, mobilizadoras de energias de transformação, se vejam reféns do imediato. E nossa luta diária e dolorosa é cada vez mais parecida com a de um nadador experiente e multicampeão que começa a se afogar e, de repente, duvida da capacidade de suas forças e habilidades.
A eleição de Bolsonaro e seus iguais (Dória, Witzel e outros) é uma força de negação. Eles não propuseram um futuro melhor ou um exercício mais limpo da gestão pública. Eles apenas se ancoraram no “não”, no “somos contra”, no “nunca mais”. E assim chegamos aqui, incapazes de imaginar e, portanto, aparentemente incompetentes para a construção de algo que tenha outro cheiro, outra cor, outro sentido.
Em Elogio do político: uma introdução ao século XXI, Vicent Peillon afirma que “cada um, para viver, deve montar as peças de sua narrativa, forjar seus mitos verossímeis, organizar seu próprio tribunal, distribuir as penas e as recompensas”. Passou da hora de perceber que nossa narrativa precisa contemplar algo mais palatável do que aquilo que se oferece dúbio e obscuro. Considerando as tecnologias digitais, o mundo do trabalho e a organização de nossas cidades, qual é o modelo de educação pública que defendemos? De que maneira escolas, educação e autonomia infantil precisam ser combinadas no Brasil do século XXI?
Estamos cada vez mais aderidos ao presente e, portanto, sem capacidade de vê-lo em perspetiva e, assim, sem capacidade de perceber as frestas que permitirão sua superação. Com os olhos nas mídias sociais ou aferrados às nossas lutas corporativas, tornamo-nos impossibilitados de mobilizar energias coletivas que sejam transcendentes. Parece-me que é exatamente isso que nos impossibilita de conectar nossas bandeiras e siglas à superação de nossos problemas reais. Perdemos a conexão parte importante de nossa gente porque perdemos a conexão com as grandes causas do nosso tempo.
Precisamos olhar com muita atenção para a vida nas cidades, lugar onde se concentram gigantescas e exploradíssimas reservas de mão de obra. As esquerdas precisam ter o que dizer para essa gente. Não é possível que continuemos a pensar os nossos projetos políticos apenas como algodões entre as bienais eleitorais. A política é mais do que soluços nos intervalos da vida cotidiana.
A capacidade de fazer política e de imaginar o futuro não virá como dádiva. Teremos de enfrentar nosso presente e nossos demônios na aspereza das ruas, praticar a cidade e nela reaprender uma pedagogia. Só assim haverá um outro futuro diferente da idiotia atual. A fratura de nosso discurso com a realidade está exposta. As forças políticas progressistas do Brasil de hoje têm dúvidas sobre sua potência. Mas não estamos sós: todo o país também tem essas dúvidas.
Só vamos reaprender a semear a utopia, a construir um outro mundo, um outro lugar, se estivermos com as pessoas que andam pelas ruas. Nossas briguinhas internas não interessam a ninguém. Eu mesmo (confesso!) muitas vezes não entendo porque nos fragmentamos tanto. Do ponto de vista da grande luta política, nossas repetidas divisões não fazem sentido? Claro que muitos dirão que sim. Afinal, se não fosse assim não estaríamos separados. Mas, tentando olhar o mundo pelos olhos do operário em construção, o que isso importa? Que diferença faz onde está Molon ou Freixo, Erundina ou Haddad, Boulos ou Marília Arraes, Jandira ou Benedita?
Nossos demônios vão além do próprio Bolsonaro e seus filhinhos. Nossos problemas começaram antes e também tem a ver com o que somos e com nossa afonia. Recuperando um dos documentos mais marcantes do programa de governo de Lula em 2002, vale dizer que só enfrentaremos esses demônios se colocarmos, novamente, nossa “imaginação a serviço do Brasil”. (2)
(1)PEILLON, Vincent. Elogio do político: uma introdução ao século XXI. São Paulo. Ed. SESC/SP, 2018.
(2)A imaginação a serviço do Brasil é o título do programa de governo para a Cultura de Lula em 2002.