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OPINIÃO
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O deserto não tem ruas. Os miolos das florestas e os picos nevados também não as têm. Ao menos, não como as temos nas cidades, com asfalto permissivo, carros autoritários e solidão crescente.
A rua nasceu como local de encontro e dissenso, como o território de maior diversidade possível. As casas contemporâneas, por outro lado, são o espaço da homogeneidade, o território dos iguais. Talvez seja pela dificuldade de acolher a diversidade eloquente dos adolescentes e jovens que as casas se tornam tão espinhosas: por que eles e elas são gente povoada por turbulentas energias de transformação. A rua, por sua vez, é onde idealmente se vê de tudo e se sedimenta a noção do outro e da tolerância partilhada.
Na minha infância “era fascinante me sentar ao lado dos adultos para ouvir suas histórias, seus problemas e suas alegrias. Pelos desvãos dos assuntos, sempre caíam algumas migalhas de impertinência. Ainda que eu não ficasse escondido, acho que, de certa maneira, eu ocupava as frestas dos ambientes. Foi assim que eu percebi que as conversas são como o trajeto entre a calçada e o quarto dos fundos de uma casa: à medida que entramos vamos baixando o volume, mudando o tom e buscando outros temas. Na calçada falamos alto e quando pisamos os jardins ainda damos risadas de exibição. É quando fechamos a porta da sala e invadimos o corredor que contamos a fofoca mais ardilosa, tiramos do bolso a opinião mais indiscreta e depositamos sobre a cama do quarto dos fundos o mais saboroso segredo sobre as aventuras mundanas”[1].
Mas o mundo real atual, muito diferente do que meu olhar infantil me permitia imaginar, transformou as ruas em lugares de muito ruído e pouca tolerância, de muitas buzinas e silêncios ensurdecedores. Ao mesmo tempo em que a cidade e o urbano parecem ser o destino incontornável da sociedade capitalista, a vida na cidade parece agonizar sob o signo da segregação espacial, do crescimento explosivo de condomínios e loteamentos verticais e horizontais, da imobilidade crônica, da utilização cada vez mais rentável do solo, enquanto as desigualdades gritam por todos os seus poros. Que cidade é essa que ao mesmo tempo nos atrai e nos exclui, nos seduz e nos cala, nos acolhe e nos constrange? E as crianças que vivem aí: o que elas têm a dizer sobre o nosso tempo?
É necessário e urgente perguntar como nossa época e nossas ruas se apresentam aos olhos das crianças? O que elas pensam do espaço público, o que entendem por país, como elas veem os outros, que capacidade à empatia nós estamos legando a elas? Como elas estão apreendendo nossa relação com a política brasileira e o silêncio que sombreia nosso olhar? Como elas vivenciam essa cidade da intolerância indiferente, a cidade da não-partilha, que lhes estamos dedicando?
Há algumas semanas, a filósofa Carla Ferro postou em seu facebook algumas reflexões sobre esse silêncio que nos atordoa. “Coleciono rascunhos que são a prova de uma solidão crescente. A preguiça de discutir me silencia, e o silêncio me entristece. Porque ‘no ato de escrever há a tentativa de fazer da vida algo mais que pessoal, de liberar a vida daquilo que a aprisiona’. O ato de escrever é o de lançar uma flecha. O percurso da flecha, até cair de novo, constitui o período não desértico possível”. Quantos, progressistas ou conservadores, azuis, amarelos ou vermelhos, diversos ou indiferentes, estão tristes e silenciosos como ela? Quantos de nós, como eu, lutam contra o próprio silêncio em busca da própria coragem?
Somos muitos e muitas que, depois de meses, estamos recuperando o fôlego. Acredito que estivemos em silêncio por causa de alguma coisa parecida com o que chamamos de medo. Sentimos medo das multidões irascíveis, medo dos fuzis atravessando cortinas e janelas, medo do escuro das ruas vigiadas, medo dos tweets sem sentido, medo dos exércitos invisíveis, medo dos que odeiam, medo dos que perderam a esperança, medo dos que abandonaram as ruas.
Mas, para resistir, o silêncio não será suficiente. Para que ninguém solte a mão de ninguém será preciso convidar à dança das palavras e das utopias. É preciso escrever teorias e poesias, compor músicas e gritos de luta e fazer filmes para todos os olhares. Para que as crianças possam acreditar na cidade, será preciso convidá-las para ir à rua, contar-lhes uma nova história à sombra de uma árvore num parque público e propor que elas se permitam à uma paisagem que não será mediada pelas janelas de carros ou ônibus. A rua só voltará a ser um lugar de todos e todas, o território do diverso, se tivermos a coragem de recuperar a dimensão teatral da vida e da luta política.
Para isso, afrontemos o silêncio que nos desmobiliza, aceitemos o jogo dos dissensos e sigamos. A esquina talvez esteja longe, mas há crianças no caminho nos estendendo a mão.
[1] Trecho de uma carta ainda não publicada que escrevi para o meu filho, Théo, antes dele nascer.