Enfim, a tão sonhada república dos bacharéis

No blog Urbanidades, Fernando Lara destaca que “os bacharéis assaltaram o poder e o campo democrático vai precisar de muita luz e muita resistência para reequilibrar minimamente o jogo”

Foto: Agência Brasil
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Na semana passada esteve aqui na Universidade do Texas o cientista político Leonardo Avritzer. Professor titular da UFMG, Avritzer é um dos estudiosos que eu mais respeito. Seus livros sobre Orçamento Participativo são bibliografia básica no assunto e sua análise sobre as questões políticas brasileiras costumam ser ponderadas e acertadas. Aqui na UT, Avritzer apresentou a ideia de que uma presidência fraca é reflexo dos erros de Dilma e do oportunismo de Temer, sem falar do despreparo de Bolsonaro. Mas a presidência fraca é principalmente reflexo do crescimento do papel do poder judiciário. Citando estudos de Guillermo O'Donnel dos anos 80, Avritzer apresenta o crescimento do papel do judiciário como uma necessidade para o equilíbrio entre os poderes na transição da ditadura de 64-85 para a democracia. A própria Constituinte de 86-88 tratou que construir um papel mais relevante para o poder judiciário que teve atuação apagada durante toda a história do império e mesmo na república brasileira. As primeiras décadas do século passado foram chamadas de Republica dos Bacharéis pelo barulho que faziam os formados em Direito, que dominavam os conchavos políticos de SP, Rio, Recife e Salvador. Mas não nos enganemos: o poder verdadeiro estava com os militares. Tanto que os principais fatos históricos da república, começando pelo golpe de 1889, a Revolta dos 18 do Forte de 1922, o Golpe de 1930 e a Intentona Comunista de 1935 foram protagonizadas pelos militares. O Estado Novo de Vargas só fez aumentar o poder militar, gerando a presidência do General Dutra e o protagonismo de coronéis da Aeronáutica e do Exército, até culminar no Golpe de 1964. O protagonismo da república brasileira, democrática ou golpista, foi todo dos militares, de Deodoro a Geisel. Os bacharéis eram como um enfeite necessário na sala de visitas para dar um verniz de legalidade a uma república. Isto muda radicalmente depois da Constituição de 1988, com o Judiciário ganhando mais e mais poder até chegarmos à situação atual, em que as grandes estrelas políticas do Brasil são juízes e promotores. Ao ponto de o STF, sob a inegável liderança de Gilmar Mendes, se arvorar a legislar quando entende que o Congresso não o faz, ou permitir ou não a nomeação de ministros do executivo federal. Vivemos uma república não democrática (nenhuma novidade, foi assim na maior parte do tempo desde 1889), em que o verdadeiro poder está no Judiciário, enfraquecendo tanto o Legislativo quanto o Executivo em todos os níveis. O agora exposto acordo de 2,5 bi para criação de uma fundação de direito privado (que acabou sendo suspenso) era só a ponta de um longo emaranhado que vamos demorar a desatar. Não me surpreende a quantidade de militares no governo Bolsonaro, o que me inquieta é tentar entender como os militares responderão a essa inversão de papéis inédita na história da república brasileira, em que eles estão ali fazendo número para que o Judiciário continue exercendo seu protagonismo. O problema é que não temos nenhuma tradição de acompanhar ou mesmo entender as dinâmicas do poder judiciário. Nossos livros de história e ciência política discutem exaustivamente a presidência e o Congresso, e quase nada se sabe dos debates jurídicos. Quais eram as forças pró e contra Vargas dentro do poder judiciário. E pró e contra o Golpe de 64? Quais os líderes do STF ou juízes de destaque na cena nacional? Quais as disputas em curso entre MPF federal, estadual, desembargadores e grandes escritórios de advocacia? A maioria dos brasileiros, mesmo ilustrados leitores da Fórum, só conhece Rui Barbosa e Francisco Campos. Precisamos urgentemente entender as forças políticas, as correntes e os debates jurídicos, porque seguramente vamos lidar com o poder judiciário liderando as principais questões políticas por décadas. Vivi isto na pele nos dois anos em que fui professor titular da UFMG e encontrei uma universidade absolutamente judicializada. Colegas no auge da carreira cursando Direito para poder se manter na estrutura administrativa com um mínimo de autonomia. Funcionários se recusando a assinar qualquer coisa com medo de um Ministério Público que agora se mete até em processos de seleção de mestrado. Chefes de departamento negando qualquer pedido que possa, talvez, gerar questionamento, apesar de estar dentro da letra da lei. Foi impossível implementar meu projeto de internacionalização e ser professor titular com um pé no exterior, apesar da lei 12.772/2012 o permitir. Chegou ao ponto de uma situação Kafkiana em que nem me davam autorização para orientar alunos no exterior, nem me deixavam mudar de regime de dedicação. Investigar reitores é só a ponta do iceberg, a tão sonhada autonomia universitária foi sequestrada por um judiciário superdimensionado e superambicioso, que penaliza qualquer iniciativa ou inovação. Os bacharéis assaltaram o poder e o campo democrático vai precisar de muita luz e muita resistência para reequilibrar minimamente o jogo. Até porque a alternativa, como já anunciada, é mandarem um cabo e um soldado.

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