República com príncipes? (Divagações, meras divagações)

Leia no Blog do Mouzar: “O Brasil é uma república estranha. Aqui, um presidente foi eleito pensando que ia poder reinar, mas está vendo que a coisa não é bem assim”

Foto: Arquivo Pessoal
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O Brasil é mesmo uma república estranha, parece saudosa da monarquia. Aqui temos reis para tudo. Rei do futebol, rei do gado, rainha do carnaval, rainha dos baixinhos, rei do iê-iê-iê (lembram-se desses tempos do Roberto Carlos?), rainha do iê-iê-iê (olha aí a Wanderléa)... Bom, onde tem rei e rainha, devem existir também príncipes e princesas. Olegário Mariano, Olavo Bilac e Guilherme de Almeida (talvez mais alguns), cada um num tempo diferente, foi chamado de “príncipe dos poetas”. Fernando Henrique Cardoso era chamado de “o príncipe da sociologia brasileira”, ou “príncipe dos sociólogos”, mas depois de presidente essa aura de “nobreza” se apagou, quando entregou boa parte do patrimônio brasileiro ao capital privado, inclusive o estrangeiro. Na época, escrevi: “O príncipe dos sociólogos, quando chegou ao trono, virou rei dos vendilhões”. Ah, falei em nobreza? Tá aí outra coisa da monarquia, presente no pensamento de um monte de gente que usa expressões como “bairro nobre”. E tem gente por aí se julgando “a rainha da cocada preta”. Por falar nisso, como surgiu essa expressão para se referir à gente metida a besta? Segundo li, quando a família imperial portuguesa baixou no Rio de Janeiro, Dom João VI tornou-se um grande apreciador da cocada preta, a mais apreciada. Quando ela era oferecida, fresca, ele era o primeiro a servir-se, só depois os outros membros da corte podiam se deliciar com ela. Por isso, o povo começou a gozar, ironizando as pessoas que se julgam superiores. Quando alguém mostrava arrogância, esnobando os outros, debochavam dela dizendo que ela se julgava a rainha da cocada preta. Observação: já pensei que nomes da natureza também deveriam ser revistos. Reinos mineral, animal e vegetal? Tem monarquia aí também? Rê-rê-rê. Príncipes absolutos? A monarquia absoluta, em que o rei manda e desmanda, não tem que respeitar Congresso nem nada, anda fora de moda. As monarquias mais famosas, como a do Reino Unido, Holanda, Dinamarca, Suécia e Japão, são parlamentaristas, o rei ou a rainha não apita muito. Quem governa é o primeiro-ministro. Mas dentro da monarquia, há “nuances”. Que diferença há entre rei e imperador? A coisa não é muito clara, mas entende-se que imperador é um rei mais poderoso, mais mandão. Quando o Brasil se separou de Portugal, Dom Pedro I não virou “rei” do Brasil, embora filho do rei de Portugal, preferiu ser imperador, título que dá a sensação de mais poderoso. Napoleão Bonaparte também assumiu o poder na França e se proclamou imperador. As monarquias costumam ser hereditárias, mas às vezes um rei é derrubado e surge outra dinastia. Na França, a monarquia tinha sido derrubada pela Revolução e foi restabelecida anos depois por Napoleão, que de militar se tornou imperador. Não conheço caso de rei ou imperador eleito. Mas o Brasil, como disse no começo, é uma república estranha. Aqui, um presidente foi eleito pensando que ia poder reinar, mas está vendo que a coisa não é bem assim. No regime político presidencialista, que é o que temos aqui, o presidente não pode ser comparado à rainha da Inglaterra, ele governa, mas governa dependendo do Congresso e do Poder Judiciário, embora isso tenha nuances também. O Congresso e o Judiciário podem funcionar pra valer ou agir como meros poderes decorativos, subjugados pelo Executivo. Enfim, aqui – até prova em contrário – temos um presidente eleito que jurou obedecer à Constituição, portanto não atropelando os poderes Legislativo e Judiciário, embora um dos três príncipes (assim se sentem...) tenha declarado que para fechar o STF, a cúpula do Judiciário, bastava um cabo e um soldado. E um ministro considerado quase braço-direito do presidente foi derrubado por outro príncipe. É isso, não temos rei nem imperador. Mas temos príncipes, ou pelo menos pessoas que se julgam príncipes, e não de uma monarquia parlamentar, mas uma monarquia absoluta. Que nobreza é essa? Teoricamente, os títulos de nobreza são conquistados nos campos de batalha, mas no caso do Brasil a maioria deles era comprada. Havia nobres que nunca combateram, mas tornaram-se barões, condes ou viscondes. Duque era o título maioral de todos, mas acho que só Caxias o recebeu. E guerreou de verdade, gostemos ou não. Durante a Revolução de 1930, os revolucionários gaúchos se dirigiam ao Rio de Janeiro, capital da República, para tomar o poder, e correu a notícia que eles entrariam no estado de São Paulo por Itararé. Prepararam-se então para deter os gaúchos naquela cidade. Mas eles não passaram por lá. Só que houve quem fantasiasse, até descrevendo uma heroica batalha entre paulistas e gaúchos em Itararé. O humorista (gaúcho morando no Rio) Aparício Torelli, grande gozador, inventou que havia se destacado na Batalha de Itararé, a batalha que não houve. Comprou uns uniformes velhos, até rasgados, da Guerra do Paraguai e fez fotos “comprovando” sua participação nas lutas, e no ano seguinte se autonomeou Duque de Itararé. Segundo A Manha, seu jornal, esta concessão fazia justiça “a uma personalidade de excepcional valor, que se distinguiu no campo de batalha”. Semanas depois, “como prova de modéstia”, ele se autorrebaixou para Barão de Itararé. Mas na verdade, o motivo era que Barão soava melhor do que Duque de Itararé, e além disso havia o velho ditado bem ao estilo dele, de que “quem rouba pouco é ladrão, quem rouba muito é barão”. E ele se autoproclamou imperador da URSAS (União das Repúblicas Socialistas da América do Sul). Nessa época, existia a URSS – União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, centralizada pela atual Rússia. A partir daí, A Manha passou a divulgar atividades de sua majestade, Barão de Itararé, o Brando. Só que esse epíteto soava como “obrando”, ou seja, defecando. Na eleição passada, a direita babona falou esbravejando de um plano internacional de criar aqui a URSAL – União das Repúblicas Socialistas da América do Sul, citado num artigo da socióloga Maria Lucia Victor Barbosa – que talvez tenha inspirado na brincadeira do Barão –  ironizando o encontro de esquerda da América Latina em Havana. Não sei se o Barão, se estivesse aqui, riria muito ou pensaria triste no nível de imbecilidade a que chegou a política brasileira. Já que falei do Barão de Itararé, ele foi preso em 1935, por causa da chamada “Intentona Comunista” e amargou uns dois anos no xilindró. Na cadeia, sofria como todo mundo, tinha momentos tristes, segundo relataram os companheiros presos. Mas reagia com humor e ficava imaginando coisas, mudanças no mundo, até mesmo no jogo de xadrez que, segundo ele, deveria ter peças feitas com material comestível, assim, quando alguém comia uma pedra do outro, comia literalmente. Isso tornaria dispensáveis as pausas para alimentação. E outra coisa era que a regra de que o rei não pode ser comido deveria mudar. O rei passaria a poder ser comido e aí se proclamaria a República. Quem fica com’herdeiro? Uma brincadeira de caipiras: quando alguém cobiçava muito o dinheiro do pai, diziam que ele iria ficar “como herdeiro” do velho, mas juntando as duas palavras, pronunciando “com’herdeiro”, parecendo dizer que o sujeito ia ficar “com o merdeiro” do pai. Falo disso me lembrando de uns príncipes herdeiros, ou de um marido da princesa que herdaria o trono. O Conde D’Eu, francês, casado com a Princesa Isabel, tinha fama de ser flor que não se cheirava. Andou fazendo muitos desmandos, inclusive na Guerra do Paraguai, o que fez o sogro, Dom Pedro II, mandá-lo uns tempos para fora do país, para não manter a encrenca dentro de casa. Além de tudo, diziam que ele maltratava demais as pessoas (estava ali o rei da cocada preta?) e era louco por dinheiro. Foi dono de um dos maiores cortiços do Rio de Janeiro, explorando pobres. Na entrada desse cortiço havia um portal, e sobre ele uma cabeça de porco de bronze. Os moradores dali diziam que moravam “no cabeça-de-porco”, e daí a expressão virou sinônimo de cortiço no Rio, espalhando-se por outros locais onde ainda hoje chamam os cortiços de cabeça-de-porco. É bom não vacilar Para quem duvida que o Brasil possa voltar a ser uma monarquia, lembro que na Espanha, depois de governada tiranicamente pelo ditador Francisco Franco, restauraram a monarquia. Antes de morrer, Franco trouxe de volta a família imperial derrubada muito tempo antes, colocando Juan Carlos como rei. Só que é uma monarquia parlamentarista e que se desenvolveu no rastro de uma Europa que contribuía bastante para o progresso, como ocorreu também em outra ex-ditadura, a portuguesa, que não virou monarquia. Aqui, há saudosos da monarquia. Só que talvez os herdeiros do Conde D’Eu não devam sonhar muito, podem perder a vez para outra dinastia meio napoleônica (no sentido de não ser de família “nobre”). E falando nisso, eu também já tive meus momentos de rei. Foi nos tempos da ditadura. Um bando de estudantes de Geografia começou a frequentar o Bar do João, na entrada da Cidade Universitária de São Paulo, tendo como companhia mecânicos, carroceiros e pobres em geral. Uma mulher que tinham o que chamam de “tino comercial” comprou o bar e o transformou em Bar da Tia Rosa. A coisa cresceu, virou ponto de muitos e muitos estudantes. E era um clima de alegria que não combinava com os tempos sombrios de 1969/70/71. Começamos a brincar que estávamos em outro país. Resolvemos “criar” ali um país fictício. Um ponto de referência, na época, era uma paineira – conhecida como “a árvore” – que tinha ali perto, que a prefeitura falava em derrubar havia um tempão, mas a população reagia e não deixava. “A árvore” era simbólica. Marcava-se encontros perto da árvore, debaixo da árvore, mas à prefeitura só interessava saber que se ela fosse derrubada renderia uma faixa de trânsito a mais. Então, “a árvore” era um símbolo de resistência. E nosso “país” teria que incluí-la no nome. Assim, foi criado, com capital no Bar da Tia Rosa, o Sacro Império Dissoluto, Etílico e Arbóreo. E como eu era dos primeiros e dos mais frequentes frequentadores, fui proclamado “imperador dissoluto”. Nomeei ministros etc. E um amigo, o Quincas, se nomeou meu escudeiro, mas outro amigo dizia que ele não era “ex-cudeiro”, era “sempre cudeiro”. Como ele deve ser chamado? Falei do imperador, do rei... Do soberano, enfim. Mas se no Brasil pegar uma monarquia, como é que nós, súditos, servos ou vassalos deveremos nos referir a ele? Andei pensando em alguns adjetivos. Majestade pode ser muito simples. Vejam outros, atuais ou não: xeque, mandachuva, corifeu, potentado, cabeça coroada, ungido do Senhor, czar, duce, kaiser, césar, fuehrer, xá, rajá emir, paxá, micado, mandarim, tuxaua, tubixaba, sultão, sol, amo, senhor, cacique, morubixaba... Termino estas divagações com uma pergunta: o sujeito que se casa com uma rainha megera pode ser chamado de príncipe consorte?

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