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OPINIÃO
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Segundo o texto apresentado aos créditos finais de “Poderia me perdoar?” (dir. Marielle Heller, 2018), Lee Israel, protagonista do filme e autora do livro de onde foi adaptado, forjou cerca de 400 cartas de artistas famosos (duas delas foram parar, inclusive, na biografia de uma das suas “vítimas”, Noël Coward). Interpretada aqui por Melissa McCarthy, Israel nos é apresentada pelo filme como uma mulher de tal flexibilidade moral ou desinteresse pela lei que não chega a se sentir culpada pelas suas falsificações. Recusando-se a conduzir uma vida de coquetéis com a elite literária, entrevistas na televisão e sorrisos hipócritas, o crime (ou ao menos, esse tipo específico de crime) surge como uma resposta da escritora a um mercado que a subestima e ignora - uma resposta semelhante a que seu amigo e cúmplice, Jack Hock (interpretado Richard E. Grant), um homem gay desabitado, dá à sociedade que o marginaliza. Há, no entanto, outra consideração que precisa ser feita ao desapego da personagem pela ética editorial.
Lee Israel, como biógrafa de curiosas personalidades estadunidenses do início do século XX - Tallulah Bankhead, Dorothy Kilgallen, Estée Lauder, nomes significativos em suas respectivas áreas, mas frequentemente ignorados -, sustenta parte de sua impaciência para com os costumes contemporâneos em seu próprio apego nostálgico ao que ela mesmo se refere como “uma época melhor”. É notável que Israel, uma mulher lésbica e progressista, refira-se a um momento em que seus “personagens” eram forçados a recolher sua personalidade ao texto privado de cartas domésticas como “um tempo melhor”. Mas é precisamente isso que a personagem considera, enquanto imita o estilo e a esperteza de tipos como Noël Coward, Fanny Brice e Dorothy Parker.
Para Israel, a palavra escrita mantinha, a essas personalidades e ao mundo que habitavam, uma qualidade da reclusão - qualidade esta que ela mesma, uma escritora reclusa, conhece muito bem. Em seu desprezo pelo âmbito midiático, Israel produz um apelo à domesticidade dessas figuras públicas, criando conversas que nunca existiram fora das suas cartas. No cerne desse apelo, no entanto, está um esforço coletivo (compartilhado tanto por Israel quanto por seus clientes) de ler aquelas cartas como criações autênticas.
O orgulho de Israel está na semelhança da sua imitação, em o quão próximo ela é capaz de chegar daquele tempo e linguagem. Ela se gaba de ser uma “melhor Dorothy Parker do que a própria Dorothy Parker” quando Jack a lembra de que não são os textos dela que circulam, mas sim os desses poetas mortos, alheios às palavras, frases, jogos de linguagem e humor creditados como evidências de sua genialidade. A autoria das cartas é, assim, motivo de considerável debate: Israel as escreve, moldando-se a partir desses grandes personagens; estes, por sua vez, emprestam sua assinatura a Israel, que é, como ela mesmo diz, protegida de qualquer crítica ao se esconder por trás de nomes tão consolidados.
Produzindo um universo literário que pertence a um outro tempo e a outros autores, parece inevitável que Israel, em sua reclusão, habite o mundo que ela mesma criou - ou recriou. De uma narrativa ambientada no início dos anos 1990, a direção de Heller conduz Israel para um espaço fora do tempo, no que sua própria construção fílmica de Nova York a leva por dentro de uma cidade gelada, simpática em sua indiferença e terrivelmente atraente à nostalgia da escritora. A Nova York de Heller e Israel é a cidade sombria dos quadrinhos autobiográficos de Will Eisner tentando ser a cidade dos musicais de Fred Astaire e Ginger Rogers, das narrativas urbanas de Truman Capote e do café da manhã de Audrey Hepburn em “Bonequinha de luxo” (dir. Blake Edwards, 1961).
A Nova York que Lee Israel e Jack Hock habitam é, enfim, a cidade dos desabitados procurando a cidade dos ribombantes anos 1920. É também uma Nova York anterior ao processo de gentrificação pelo qual a cidade passou nos anos 1990 - logo mais, seria consideravelmente mais difícil para esses dois personagens encenarem ali a sua nostalgia. Isso o filme também reconhece. Israel, afinal, é descoberta, revelada como falsária e punida por seus crimes; Hock não sobrevive para ver essa outra cidade, morrendo em 1994. Um dos colecionadores a quem Israel vende suas cartas lamenta que falsários como ela não tenham verdadeiro apreço pela História. Dentro do filme, a observação soa perfeitamente irônica. Ninguém parece ter tanto apreço pela História, pela personalidade da História, seus reconhecimentos de gênero e classe, quanto Lee Israel. E certamente não é um apreço pela História que a cidade herda após Israel, nos anos da prefeitura de Rudy Giuliani e da sua reconfiguração urbana.
Melissa McCarthy e Richard E. Grant nos entregam personagens inquietos e fora de lugar - por uma questão de classe, gênero e sexualidade tanto quanto de nostalgia -, mas também personagens que têm suas inquietações abrigadas na cidade fria que Heller constrói para eles. A raiva manifesta da Israel de McCarthy é a de quem encontra, ainda, um espaço para vociferar sua perfeita indignação estética e política - o que McCarthy faz, amaldiçoando qualquer sugestão de que ela deve se adequar a um padrão dos tempos, esbravejando contra o que a elite midiática e intelectual espera do comportamento dela. Richardt E. Grant, enquanto isso, é charmoso onde o charme não é próprio, é um sem-teto elegante, cleptomaníaco e criminoso sem carreira, operando nos níveis mais banais do tráfico.
O título do filme se refere a uma das cartas inventadas por Israel, em que Dorothy Parker, aqui não mais do que uma personagem fictícia perpetuada na criação da falsária, sugeriria, como uma consequência de suas contravenções, enviar a seus companheiros, amigos e colegas uma série de cartões com a frase “Poderia me perdoar?”. O pedido por perdão parece chegar ao título da obra de forma igualmente desinteressada. “Poderia me perdoar?”, o filme e seus personagens, não esperam muito do nosso perdão e conseguiriam muito bem seguir sem ele. Esta é uma obra, enfim, distintamente sem remorsos - e, por isso mesmo, deslumbrante.
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