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OPINIÃO
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Nos últimos textos busquei estabelecer uma relação entre machismo e misoginia (masculinidade) com o modo de produção capitalista. Ou seja, que tal formatação do homem está atrelada diretamente ao sistema capitalista. Por conta disso, teci algumas críticas sobre a maneira como a discussão a respeito das paternidades e “novas masculinidades” têm ganhado espaço. No geral, essas discussões têm acontecido levando em conta apenas indivíduos e transformações individuais, o que, a meu ver, se tornam inócuas, visto que a violência perpetrada por homens é parte constituinte do capitalismo. Para mudar um, é preciso destruir o outro.
Dissertei, basicamente, sobre homens heterossexuais e, a partir do conceito de Anne McClintock, o do Homo Conquistus, que surge, historicamente, a partir da colonização da América. A masculinidade ganha nova configuração a partir desse homem conquistador, que será calcado na dominação, violência e posse. Simultaneamente a isso, passa a ser imposta a divisão sexual do trabalho nos povos americanos que já se encontrava em desenvolvimento na Europa com a primeira etapa da revolução industrial.
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Se de um lado teremos essa nova configuração do homem heterossexual, e juntamente com isso a construção de uma nova mentalidade que versaria sobre/também, os padrões de normalidade e anormalidade dos corpos, teremos, também, a edificação de um pensamento conservador sobre as relações não reprodutivas, ou seja, homossexuais. Esse pensamento tem uma longa história como já apontei em textos anteriores. Ele se dá a partir do século XIII com a perseguição dos movimentos heréticos e de caça às bruxas. Podemos estabelecer como o início do controle dos corpos e da dita vida “privada”, fato que não existe no capitalismo.
Há uma outra política que terá aplicação no mesmo momento histórico: a assimilação. Tática genocida utilizada pelos poderes imperiais/colonialistas para dizimar as organizações sociais não brancas. Porém, engana-se quem pensa que tal medida se encerrou juntamente com o período colonial da América e de países africanos. Com as novas etapas do capitalismo e seus produtos culturais cada vez mais disseminados ao redor do mundo, ela se torna mais sofisticada. E aqui entramos especificamente na questão das bichas, a masculinidade e o modo de produção capitalista.
Fora do meio
“Fora do meio” é uma expressão utilizada por homens homossexuais para dizer que não são afeminados, que não frequentam ambientes LGBT e que são, acima de tudo, masculinos e que “não curtem viados ou bichas”. De pronto, afirma-se que estes homens sofrem de “homofobia internalizada” e que por isso se afastam de tudo aquilo que remete a uma vida não heterossexual. Em alguns casos pode até ser, mas não corroboro essa tese. É importante compreendermos o poder social do capital infiltrado nos meios de produção cultural.
Por que falo isso? A política de assimilação se tornou insidiosa para alguns grupos sociais, especificamente as LGBT e pessoas negras. Esta ferramenta, não podemos esquecer, tem como prisma apenas dois destinos: a brancura e a família heterossexual reprodutiva. Ninguém está livre de ser atingido por essa política de assimilação, aliás, todos os corpos que não fazem parte do modelo nuclear em algum momento da vida se questionam ou tentam se assimilar ao comportamento designado como “certo” ou “normal”.
Mas, também se engana quem pensa que essa política de assimilação tem apenas como alvo as LGBT no período moderno/industrial. E aqui destaco dois livros que tratam disso: “Devassos no Paraíso: a homossexualidade no Brasil da colônia à atualidade”, de João Silvério Trevisan, e “Além do carnaval” James Green. A construção da bicha enquanto sujeito a ser eliminado do espaço público tem a sua história iniciada desde os tempos coloniais, e isso está completamente atrelado a construção da nova masculinidade. Ao chegarem na América, os colonizadores europeus se depararam com uma outra configuração de masculinidade, a qual será designada enquanto “lânguida” e “fracassada”, ou seja, abjeta e, aos olhos das missões cristãs, possuídas pelo demônio.
O gay macho
A partir do século XX teremos a constituição de dois grupos de homens homossexuais: o gay macho e a bicha. O primeiro é aquele já remetido no texto: “fora do meio” e que busca se aproximar do comportamento do homem heterossexual; a bicha é uma figura histórica. É difícil precisar o seu surgimento, mas alguns estudos (James Green) indicam que a figura transgressora relacionada à bicha está presente desde o fim do século XIX na Bahia, Rio de Janeiro e São Paulo, em contextos variados.
Avançando no tempo, chegamos na contracultura brasileira e a bicha transgressora será uma personagem comum nos locais de vivência LGBT, porém, a gay macho, musculosa e “fora do meio” também, mas ainda não tão popular. A questão do gay macho e das masculinidades viadas tornar-se-á pauta do incipiente movimento homossexual (como era chamado o movimento LGBT à época) e será capa da extinta revista “O Lampião de Esquina”. Pois, cabe destacar que o movimento desta época era fortemente influenciado pelas teses anarquistas e comunistas e visava discutir e combater o machismo presente entre as bichas.
Porém, o avançado debate sobre as masculinidades viadas entre as bichas brasileiras vai sofrer um forte revés: o surgimento do HIV/AIDS. A estética corporal da bicha será atrelada diretamente a uma vida promíscua e, automaticamente, a doença que surgia. Homens homossexuais voltaram para o armário e muitos outros buscam se afastar das bichas e do seu modo de viver. A partir da década de 1990, temos a importação da bicha “macho man”: extremamente “saudável” e corpo musculoso. Esse permanece presente até os dias de hoje. Porém, ao modo de produção capitalista estava a dica para incluir tais personagens no mercado: comportados, másculos e “fora do meio”. Ou seja, “as gays aceitáveis”.
Não à toa, a partir do século XXI passamos a ter vários personagens LGBT nas telenovelas e séries televisivas. A diferença com o século passado é que estas personagens passam a ter estrutura narrativa (começo, meio e fim). Mas de que maneira elas são inseridas? Quase sempre brancas, não afeminadas e sempre terminam casando-se com algum parceiro. Ou seja, à política de assimilação do capitalismo você até pode ser homossexual, desde que viva de acordo com os padrões normativos e em torno da família nuclear. Contra esta assimilação, há um embate em curso. É notória a presença da bicha e sua disputa pelo espaço público, bem como em partidos de esquerda, que até recentemente tinham (muitos ainda têm) problemas com a questão da masculinidade viada.
Fiz todo esse percurso histórico para construir uma ponte entre a masculinidade, as bichas, o gay macho e o modo de produção capitalista. Pois, homens gays não estão livres e não são “revolucionários por essência”, como se acostuma acreditar, muito pelo contrário e hoje é público o fato de que homens gays apoiam movimentos de extrema direita, ainda que este não canse de atacar qualquer tipo de homossexualidade. Mas isso decorre do poder social do capital em assimilar comportamentos para o lucro, mas este também tem o seu limite: o gay macho é facilmente consumido, a bicha serve para divertir ou para representar a transgressão no sentido negativo, invariavelmente relacionado ao uso de substâncias ilegais ou temas referentes à questão de saúde, quase sempre relacionado ao HIV/AIDS.
Portanto, para que rompemos com essa dicotomia entre Bicha x Gay macho é necessário que tenhamos no horizonte o rompimento com o modo de produção capitalista e a sua maneira de formatar comportamentos e “vidas acetáveis” por meio de seus produtos culturais. Obviamente que não é apenas isso. Há em curso uma série de trabalhos, que visam romper com tal binarismo tóxico. Com ou sem capitalismo, é necessário um longo trabalho de deseducação a respeito da masculinidade ensinada até aqui e que atinge tanto o campo capitalista quanto o socialista. Porém, dentro do regime capitalista ficaremos, como estamos até hoje, enxugando gelo ou reduzindo danos frente a uma máquina de opressão, que se utiliza de corpos e ainda por cima dita o que é normal e anormal.