The Witcher, o maravilhoso medieval e as fakenews

Em um período em que as pessoas são conduzidas por enxurradas de fakenews, as séries e filmes que retratam o maravilhoso medieval podem nos ajudar a refletir muito sobre o mundo atual

Foto: Divulgação
Escrito en OPINIÃO el
Marco Polo, Odorico e Jourdain de Séverac foram viajantes medievais que afirmavam que só iriam escrever sobre “coisas vistas", ou “maravilhas que ouvi de gente digna de fé”. Séverac dizia que no Oriente “existem dragões em enorme quantidade, que carregam sobre a cabeça pedras reluzentes".[1] Existia inclusive um mercado para peles de dragão na Europa. Bernhardus de Breydenbach destaca que é preciso desconfiar dos mercadores egípcios que vendem peles de crocodilos afirmando ser de dragão.[2] Colombo “falseava” muitas de suas descobertas para que o esperado, o maravilhoso que se acreditava existir em terras desconhecidas, se realizasse. Ele entendida que “a realidade é sempre menos sedutora do que o mito”.[3] O fabuloso era usado por Colombo para despertar em Fernando e Isabel o interesse de investir em novas viagens. Em um período em que as pessoas são conduzidas por enxurradas de fakenews que agenciam o imaginário social para interferir diretamente nas atitudes políticas e sociais, as séries e filmes que retratam o maravilhoso medieval podem nos ajudar a refletir muito sobre o mundo atual. Aqui quero falar sobre a nova série da Netflix, The Witcher, estrelada por Henry Cavill, o superman dos filmes da DC comics. Narra-se as aventuras do bruxo Geralt de Rívia, que sobrevive caçando monstros. Na maior parte dos casos, Geralt se mostra justo, benigno, o que muitos podem acreditar ser algo incompatível para um feiticeiro medieval. Contudo, durante a Idade Média, existiam os feiticeiros do bem. Carlo Ginzburg apresenta um estudo fenomenal sobre os benandanti, andarilhos do bem, que nas comunidades rurais do norte da Itália eram vistos como bons, que “impedem o mal". Dom Bartolomeo Sgabarizza, o pároco da aldeia de Brazzano, dizia que estes feiticeiros defendiam crianças ou as provisões das casas das perfídias dos feiticeiros maus.[4] Yennefer, uma das magas companheiras de Geralt em The Witcher, passou um período vivendo em uma vila resolvendo problemas locais. De acordo com o historiador Francisco Bettencourt, este era um fenômeno comum no mundo da magia. Muitas feiticeiras tentavam viver atendendo às necessidades locais: “a descoberta de animais, escravos e bens furtados ou perdidos constituía uma das fontes de rendimento dos mágicos”.[5] Havia a crença de que certos malefícios tinham origem divina. Por conta disso, chamar um médico, um mago ou um sacerdote durante uma enfermidade era indiferente.[6] Em Portugal, a mulher de Luís Martins tomou leite de cabra com sumo de arruda para tirar uma cobra da barriga. Belchior Fernandes curou a cegueira de uma mulher jogando em seus olhos sangue de pombinhos. Mulheres davam sua urina para seus amantes beberem ao mesmo tempo em que recitavam as seguintes palavras mágicas: “assim como vós bebeis meu mijado assim andeis após mim como cão danado".[7] A figura do trovador que acompanha Geralt também é real. Eram especialistas em falar de amor, mas também “cantavam a proeza dos heróis e guerreiros"[8] destaca o medievalista Jacques Le Goff. O mais interessante, no que tange a fidelidade histórica da série, é que, segundo Le Goff, o número de trovadores não nobres aumenta ao longo do século XIII.[9] Quem jogou o game ou leu a obra que deu origem à série da Netflix, sabe que ela se passa no século XIII e que Geralt não era um guerreiro nobre, pelo menos depois de ter se tornado um bruxo, pois não era detentor de terras. Os anões, que conduzem o bruxo na caça contra um dragão, eram mineradores, como vimos também na saga do Senhor dos Anéis. De acordo com Peter Burke, os mineradores acreditavam nos espíritos das minas que, por sua vez, eram anões. “Uma pintura do século XV sugere que o mundo exterior [fora da cultura fechada dos mineiros] não fazia uma distinção cuidadosa entre os anões ou gnomos que viviam nas minas e os próprios mineiros, miúdos e encapuzados como andavam".[10] A lenda se misturava ao mundo real. Diversas coisas que vemos sendo representadas na série, eram de fato praticadas na Idade Média. Quem sabe a mamadeira de piroca, a URSAL, o kit gay, etc., não sejam vistos no futuro como um maravilhoso de hoje que levou as pessoas a realizarem práticas baseadas no fabuloso? Como disse um historiador que escreveu um livro fenomenal sobre os vampiros: “A ‘lenda’ refere-se sempre a um sistema de crenças subjacentes".[11] O mesmo serve para as fakenews? Na Europa medieval, lendas e mitos eram usados para conduzir processos políticos. O rei Arthur e Carlos Magno eram exemplos de reis e por longos anos acreditou-se, em Portugal, que o rei D. Sebastião, que desapareceu na batalha de Alcácer Quibir, um dia voltaria para governar o reino lusitano. O padre Antonio Vieira foi preso pela Inquisição por defender a tese de que D. João IV ressuscitaria e lideraria o Quinto Império cuja capital seria Lisboa. Hoje, a enxurrada de fakenews aliada a um pensamento conservador deu a Jair Bolsonaro a alcunha de “mito" e muitos evangélicos o consideram um enviado de Deus. É a realidade sendo auxiliada por uma herança mental que recebeu variações, mas não deixou de existir. [1] KAPPLER, Claude. Monstros, demônios e encantamentos no fim da Idade Média. São Paulo: Martins Fontes, 1994. p. 67. [2] Id. p. 75. [3] Id. p. 72. [4] GINZBURG, Carlo. Os andarilhos do bem. São Paulo: Cia de Bolso, 2010. p. 22. [5] BETTENCOURT, Francisco. O imaginário da magia: feiticeiras, adivinhos e curandeiros em Portugal no século XVI. São Paulo: Cia das Letras, 2004. p. 71. [6] JÚNIOR, Hilário Franco. A Idade Média: nascimento do Ocidente. São Paulo: Brasiliense, 2005. p. 141. [7] BETTENCOURT, Francisco. Op. Cit., p. 111. [8] LE GOFF, Jacques. Heróis e maravilhas das Idade Média. Petrópolis: Vozes, 2011. P. 231. [9] Id. P. 232. [10] BURKE, Peter. Cultura popular na Idade Moderna. São Paulo: Cia das Letras, 1989. P. 62. [11] LECOUTEUX, Claude. História dos vampiros. São Paulo: EdUnesp, 2005.P. 17.