O Muro sobre Berlim, feixe de preconceitos e estereótipos

Luiz Roberto Alves: "Depois dele, e especialmente durante e depois de sua queda, erigiu-se outro muro de preconceitos no senso comum e nas falas de âncoras e editores da mídia"

Foto: Pixabay/Divulgação
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Não é justo dizer Muro de Berlim, pois a cidade não decidiu erigir muro algum. Foi-lhe imposto um muro como resultado das negociações sempre enviesadas nas sequelas da guerra, qualquer guerra. No caso, a última de amplitude mundial, que depois ficou fria e agora volta a ser quente e tão perniciosa quanto as guerras de combate direto e experimentação tecnológica de armamentos. A nova guerra mundial está nas ruas, na mira do sniper, na bala mentirosamente perdida, no trânsito, nos combates entre grupos e povos aparentados pela história, na ignorância e na arrogância que teimam em submeter o conhecimento, na violência da economia neoliberal contra os pobres, na bárbara incompetência dos governantes, na negação deliberada de não educar crianças e adolescentes, seja na família, seja na escola e na sociedade por obra de discursos censurados ou mentirosos. Um muro sobre Berlim. Depois dele, e especialmente durante e depois de sua queda, erigiu-se outro muro de preconceitos no senso comum e nas falas de âncoras e editores da mídia. Não é sócio Fórum? Quer ganhar 3 livros? Então clica aqui. Alguns meses em seguida à queda estive em Berlim. Encontrei ainda grandes partes do muro nas áreas periféricas da cidade. Os trenzinhos que levavam a essas áreas, sob a garoa e o frio, não escondiam a obra e as diferenças de sociedade. Naquelas paragens mais distantes o muro não era objeto de desejos, de publicidade e marketing e sim tão somente o sinal obscuro das divisões concretas do mundo. Tive a incumbência de entrevistar, para trabalho acadêmico, autoridades da educação do Estado reunificado e líderes de comunidade do leste a respeito do novo tempo cultural, educativo e político. As falas têm pouco a ver com a ignorância midiática e seus interesses de classe, de patrões e de disposição política. Quando a educação e a cultura não têm importância nenhuma, tudo muda a favor das palavras-de-ordem do poder. Noutras palavras, o leste comunista era o atraso e o oeste capitalista (nem tanto!) era o avanço. Depois de coladas tais inscrições na testa dos dois Estados, o que pode acontecer senão o mito? Mas as próprias mobilizações posteriores a 1989 na Alemanha reunificada dissolveram o mito, exceto nos lugares do mundo que não conhecem o país líder da Europa. Bastaria dizer que Angela Merkel foi educada no leste e se firmou como uma brilhante chanceler. Merkel junta as duas experiências, o que a ignorância de poderosos dirigentes de outros países não consegue fazer. O discurso da autoridade educacional do oeste era comedido. Considerava que havia um atraso tecnológico no leste, o qual incluía a educação e, portanto, exigia que grupos de especialistas trabalhassem desde o princípio da queda do muro em metodologias adequadas para a reintegração escolar. Mostrava também que não se podia admitir a supremacia do oeste, pois se isso ocorresse os processos de integração seriam cindidos e sem acordos dignos de uma sociedade democrática. A despeito dos sacoleiros indo de um lado ao outro para comprar objetos eletroeletrônicos, não havia aí nenhum sinal de rendição à cultura política do lado ocidental, mas sim o início de disposições perante novos direitos de consumidor. Quem disse que comprar um forno micro-ondas moderninho significa aceitar imposições culturais? As entrevistas com líderes comunitários do leste (inclusive pastores luteranos muito comprometidos com a ida do povo) renderam mensagens fortes. Apontava-se o engano dos discursos supremacistas, até porque do mesmo modo que o leste estava a reescrever a sua história diante de potências, o oeste lutara muito para não ser quintal americano. Nesse sentido, o mundo alemão se encontrava com um bom crédito de direitos e de serviços de lado a lado. Ademais, a sociedade do leste não se dispunha a obstaculizar avanços educacionais e suas tecnologias, mas longe de pensar que era uma sociedade sem cultura, ou com uma cultura errada. Como se viu, os caminhos da Alemanha nas últimas décadas foram muito distintos do que se deu com Sérvia, Hungria, Bósnia, Croácia, Polônia etc. A Alemanha é o coração da CE. Somente leituras insensatas e ignorantes, mais que comuns neste momento da sociedade mundial, podem jogar todos os valores na “vitória” ocidental. A Alemanha, que sofrera e aprendera com o horror fasci-nazista, trabalhou, não sem grandes dificuldades culturais, pelos movimentos integrativos e interativos. Os arranjos produtivos locais e regionais juntaram experiências comunitárias, mão de obra diferenciada, uma escola flexível e aberta ao trabalho e ao estudo e o que se chamou atitude mista de coopetição, isto, cooperação e competição, resultando em riqueza social. Nenhum sol de brigadeiro nessa experiência. Mas muito trabalho, liderança séria e competente, garantia de direitos aos trabalhadores e trabalhadoras, direitos de manifestação, decisões econômicas e judiciárias equilibradas. A Alemanha contemporânea não tentou ser espelho do mundo ou exemplo, mas está na frente das decisões sobre o clima, reorganizou sociedades decadentes e poluídas como a do vale do Ruhr (com projeto iniciado em 1989), tem propostas claras para cumprimento das obrigações internacionais e sabe administrar graves conflitos nos limites da democracia. Bem diferente, pois, do tempo vivido, hoje, por muitos países, inclusive pelo infeliz Brasil, sempre no fim da linha onde a educação e a cultura importam. Digno de dó aquele que imagina que o progresso social tem um único sujeito, o ocidental. A Alemanha reaprendeu a ser una e democrática. Mais difícil do que querer calar o povo sofredor com atos ditatoriais, previstos antes do despertamento da sociedade, o que é coisa de imbecis. Ouvimos há pouco tais imbecilidades. No entanto, o Chile despertou. O despertamento leva a considerar as várias culturas populares e o processo educacional. Aqui ainda estamos a suportar gente como Weintraub e Alvim no comando da educação e da cultura. De qualquer forma, estamos agarrados ao Chile no IDH deplorável, que considera com destaque a educação. Cabe que exijamos modos completamente distintos de construir a sociedade democrática e isso não será possível com os atuais dirigentes comandados pelo Jair Messias. Como está, só miséria demasiada em todos os cantos e riqueza concentrada em poucas mãos. A imbecilidade constrói muros piores do que os de concreto. A Alemanha vicejou depois de 1989. Nosso país, grande e infeliz, está a matar indígenas, que são a garantia da vida do planeta.
*Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.