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OPINIÃO
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Uma atitude indispensável em educação e cultura foi se tornando tabu na débil democracia brasileira: avaliar os feitos e os fatos e, se necessário, produzir a crítica rigorosa deles em direção às mudanças necessárias a fim de não perder o sentido das aprendizagens como valor de autonomia e liberdade das gerações.
Em toda a obra de Paulo Freire a atitude é exigida. No último livro publicado em vida, Pedagogia da Autonomia, 1996, nada é mais claro: “É pensando criticamente a prática de hoje, ou de ontem, que se pode melhorar a próxima prática” (p. 40, 44. ed.). Paulo considera ingênuos os educadores que não criticam suas práticas e suas teorias e, no subtítulo aqui pensado, avança para o valor da crítica como criadora de discursos e práticas mais fortes e incisivos.
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Em política, especialmente nas relações partidárias de poder, o que se chama autocrítica é coisa vetada, tabu. Visto que toda autocrítica compõe processos de avaliação, talvez não haja nessas relações políticas sequer avaliação. E quando se considera que na história republicana do Brasil raros foram as avaliações ouvidas e vistas pelo povo, o círculo vicioso se move impune, ou seja, ninguém faz, nem precisa fazer.
Talvez o outro deva fazer, mas nunca nós. Se o ato porventura fosse bom e agradasse aos cidadãos comuns, teria de ter iniciativas para se conhecer e confirmar. No entanto, no campo das práticas culturais, na literatura, nas artes e nos movimentos sociais a avaliação crítica é comum, criativa e produtiva.
Reconheça-se, no entanto, que a questão sempre atual tem seus detalhes e até seus mistérios, o que exige mais reflexão.
Nos últimos dias ela veio outra vez à baila. O ex-presidente Lula teve o direito à liberdade, muito justamente, pois foi vítima de erros da Operação Lava Jato. Procuradores e juízes, embora supostamente inspirados na operação italiana mani pulite, no entanto, sujaram suas mãos e sua consciência por interesses pessoais e corporativos.
Por via midiática, o assunto da autocrítica partidária voltou. Com a sua conhecida inteligência, Lula botou o dedo na história política: afinal, quem andou fazendo autocrítica nos últimos tempos? De fato, ninguém. Mas a polifonia dos âncoras e comentaristas de rádio e TV sabe o que quer: o reconhecimento da corrupção petista na operação que teve como epicentros o juizado de Curitiba e o MPF.
Ora, para se manter no equilíbrio das coisas, a “nova história” da Lava Jato, em início de ser contada, (com apoio dos relatos da plataforma The Intercept) poderá alterar todo o discurso oficial. Somente na medida em que o sistema judiciário do país de fato estudar todos os procedimentos da operação e julgá-la é que a realidade será esclarecida. Autocrítica exige clareza dos feitos e fatos a fim de que tenha a sua exata dimensão.
Ademais, os autodenominados comunicadores, alguns deles acadêmicos, tratam do tema em um nível de linguagem que não merece o mínimo respeito. Aliás, nosso país se tornou um lugar asqueroso de discursos de baixo calão, uma espécie de compulsão de desejos inconfessáveis que se realiza nas falas pelo palavrão sem frases, pelo jargão tópico sem efetivo discurso, pelo xingamento sem gramática. O centro desse horror é o Planalto e a família ocupante, espraiando-se então por todo lado. E ainda se brinca na mídia com a frase besta do “retirar as crianças da sala”. Ainda não se chegou à consciência mínima de que a linguagem é a construtora da pessoa. A linguagem é o ser da pessoa. Quem não pode oferecer mais que xingamentos em sua fala, não tem nenhuma coisa a dar, a oferecer, a pensar ou analisar. Será um ser asqueroso e nada mais. Suas ações serão asquerosas, como sua fala. Um pouquinho de Lévi Strauss e Roman Jakobson não faria mal, pois ali se vê a relação plena entre expressão linguística e vida.
Penso mesmo que chegará uma eleição em que a sociedade brasileira estará entupida desse horror linguístico e os vitoriosos dessa eleição serão aqueles que, a par de uma proposta exequível de política pública, usarem um registro de linguagem capaz de se comunicar dentro da dignidade da expressão. Aí superaremos o momento mais que lastimável ora vivido.
Mas tudo tem relação com tudo e suas partes. A avaliação crítica pensada por Paulo Freire tem mais a ver com a autocrítica política. Na medida em que educação é um ato político, a política tem a obrigação de ser um valor de aprendizagem, um processo de educação. Deste modo, qualquer avaliação política tem pouco a ver com a conversa de dirigentes e muito menos dos “capa-pretas” de partidos.
Avaliação e crítica só o são quando chegam à comunidade, amplamente a filiados de partidos, tornadas públicas para a recepção de outras críticas e sugestões de melhoria da qualidade da avaliação e da vida partidária, o que também vale para campanhas eleitorais e gestões de governos. O ato político da educação se faz na comunhão de aprendentes, ensinantes e toda a comunidade. Não vale fazer autocrítica na roda dos bajuladores ou dos “chegados”.
Nesse sentido, é possível reafirmar que nossa democracia cíclica e cambaleante está moribunda em sua consciência crítica. Ao tornar inviável toda a avaliação crítica de si, os sujeitos políticos perdem forças e capacidade discursiva para empreenderem a melhor crítica da realidade e passarão a repetir, tangenciar, remexer no mesmo lixo, sob pena de, incapaz do novo em forma e conteúdo, vociferar sua violência verbal no jargão baixo tornado comum, perdendo, pois, substância e viabilidade no trabalho de persuasão política.
Não há nada de novo sob o sol sem leitura crítica dos feitos e fatos que são a matéria-prima de nossa ação no mundo. Isso, também, a depreender do bom trabalho jornalístico, promotores e juízes da Lava Jato não fizeram, pois se descobriram os novos messias brasileiros. A bem da verdade, quase ninguém faz efetivas avaliações críticas neste país apequenado.