Contra as teorias de conspiração

Valerio Arcary: “Uma interpretação catastrofista da realidade associada a uma mentalidade paranoica é uma caricatura grotesca do marxismo”

Bolsonaro no dia da facada - Foto: Reprodução/Twitter
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Precisamos discutir sobre a influência perigosa de teorias de conspiração na esquerda. O tema é delicado porque não temos o direito de ser ingênuos. Sim, há mistérios nas relações de poder na vida econômico-social e política. Há grupos, ações e planejamentos sigilosos com fins ocultos. Há mesmo conspirações, e todos os dias. Edward Snowden e Julian Assange foram e são perseguidos porque investigaram o papel dos serviços de inteligência norte-americanos, como a NSA e a CIA. Todos os Estados têm seus serviços de informações. A ABIN é ativa e monitora toda a esquerda. Sim, existem de verdade as maquinações, as tramas, os conchavos e operações secretas. Existem, porque são eficientes. Devem ser investigados e denunciados, implacavelmente. Mas há também o lugar do acidental, do fortuito e aleatório. A história é uma sequência de lutas em que incide a necessidade, a enorme força de pressão dos interesses organizados, porém, dialeticamente, também, o acaso, a contingência, o imprevisto. Doenças matam (Tancredo Neves), aviões e helicópteros caem (Teori Zavascki e Ulysses Guimarães), acidentes de carro acontecem (Juscelino Kubitschek) e malucos estão à solta (Adélio Bispo e a facada contra Bolsonaro). Isso pode ser angustiante e perturbador, mas é assim. A pergunta “quem se beneficia?” não é, portanto, suficiente para retirar conclusões. Uma narrativa de culpabilização de inimigos pode ser construída com muita facilidade, sem que seja verdadeira. Apesar de controverso, o termo teoria de conspiração não é depreciativo, insultuoso, pejorativo. Porque é apropriado quando há uma fabulação fantasiosa de busca de explicação para um acontecimento. O pensamento conspiratório expressa uma compreensível incredulidade, desconfiança e suspeita diante do inesperado, do imprevisível, do impensável. Mas há, também, a pressão de padrões de pensamento da mente humana como o viés de confirmação que, em máximo grau, alimenta fantasias paranoicas ou ideias persecutórias. Trata-se de um enviezamento psicológico: a tendência de nos lembrarmos de informações que confirmam crenças. Em casos extremos, se manifesta uma compulsão obsessiva em construir uma correlação imaginária ou falsas associações entre dois eventos. Teorias de conspiração desconsideram o jornalismo investigativo profissional e a boa ciência. A análise histórica tem os instrumentos de pesquisa para desmascarar os conluios. A mentira tem pernas curtas. O destino de toda cabala é ser desmascarada. Não precisamos nos iludir com conspirações imaginárias. Já estamos bem servidos de conspirações reais. Nosso problema é que uma parcela importante do povo é muito vulnerável a teorias de conspiração. Porque elas parecem fazer sentido em um mundo que percebe como obscuro, ambíguo, confuso. As forças políticas mais reacionárias na sociedade brasileira exploram, até o limite do absurdo, as teorias de conspiração. As mensagens do bolsonarismo pelas redes sociais, nas eleições do ano passado, por exemplo, envenenaram a consciência de milhões contra uma suposta articulação do Foro de São Paulo para transformar o Brasil em uma Venezuela. Bolsonaro tem defendido que o socialismo prevaleceu no Brasil entre o fim da ditadura e sua eleição. O próprio Bolsonaro insiste em uma versão paranoica para o atentado de Juiz de Fora: quer criminalizar a esquerda brasileira, responsabilizando-a pela facada. O recurso às teorias de conspiração pelos neofascistas para garantir maior eficácia à manipulação política não deve nos surpreender. Não deve nos surpreender a força de teorias de conspiração. O tema não é simples. Mesmo na esquerda marxista mais crítica há quem esteja, em princípio, pré-disposto ou de mente aberta a aceitar conspirações onde elas não existiram. É muito diferente quando uma pessoa adere a uma teoria de conspiração, e quando uma liderança ou organização defende uma. São graus de responsabilidade distintos. A esquerda brasileira não deve usar estes métodos. Mas, ainda assim, uma parcela significativa do ativismo abraçou, por exemplo, a teoria de que a facada em Bolsonaro em Juiz de Fora não teria acontecido. O episódio foi, indiscutivelmente, decisivo. Porque, se Bolsonaro já estava posicionado, em início de setembro de 2018, para ir ao segundo turno, o atentado o colocou como favorito. Não, não foi uma armação. Não é possível uma operação secreta nesta escala garantindo a cumplicidade de muitas dezenas de pessoas, em dois hospitais, em duas cidades diferentes. Não obstante, muitas dezenas de milhares de militantes, ainda hoje acreditam que houve um complô para vitimizar Bolsonaro. As relações entre o atraso cultural do país e a despolitização política não são simples. Há nações onde o nível cultural médio é, relativamente, elevado e o grau de politização é baixo, como em muitos países centrais, e há também o fenômeno inverso, como na Bolívia. Mas estas duas variáveis têm correlações. A ideia de que forças ocultas e poderosas estão por trás de eventos, aparentemente, “inexplicáveis” se apoia na premissa de que acontecimentos com consequências extraordinárias devem ter causas graves, sérias, racionais. Paradoxalmente, também, se apoiam no anti-intelectualismo latente. O anti-intelectualismo se legitima em crenças ou argumentos ideológicos. Crenças populares são uma fé que não depende de pensamento crítico, reflexão racional ou análise objetiva, como cálculo de probabilidade ou exame isento de provas. Basta a força do desejo. Atualmente, a teoria de conspiração mais popular nos meios reacionários é a denúncia do “marxismo cultural”, que seria uma estratégia de Antonio Gramsci, supostamente difundida pela Escola de Frankfurt, e usada pela esquerda mundial para desafiar o cristianismo e derrotar o capitalismo. Trata-se de uma fábula delirante. Mas há quinze anos teve alguma repercussão a teoria de conspiração que afirmava que os ataques de 11 de setembro de 2001 teriam sido facilitados pelo governo Bush, com a finalidade de dar aos Estados Unidos um pretexto para iniciar as guerras contra Afeganistão e Iraque, promover restrições aos direitos civis no país, com a aprovação do Ato Patriótico, e iniciar ações de espionagem em larga escala. O assassinato de Leon Trotsky no México, em 1940, por Ramon Mercader, um catalão que recebeu treinamento da NKVD soviética, foi um dos crimes mais monstruosos do século XX. Essa conspiração marcou o destino da corrente inspirada no programa do internacionalismo revolucionário. Se existe uma corrente na esquerda que deve ser consciente que conspirações existem, essa corrente é o trotskismo. Por isso mesmo, os trotskistas não podem sucumbir ao perigo do pensamento conspirativista. Uma interpretação catastrofista da realidade associada a uma mentalidade paranoica é uma caricatura grotesca do marxismo.
*Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.