Apanhado do Cinema 2018

Esta lista, afinal, a oitava publicada pelo blog Milos Morpha, nunca se pretende definitiva. Não é nunca o fim, mas a continuidade de uma conversa. Confira

Documentário "O Processo", um dos selecionados do Apanhado de Cinema 2018 do Milos Morpha
Escrito en OPINIÃO el
Diferentemente do que já fiz em outro anos, eu não conseguiria ler o cinema de 2018 a partir de uma temática e estética comum ou, ao menos, aproximada. Não há como entender 2018 por um único viés, e isso é algo que o ano passado nos mostra para além do cinema. De que se trata 2018? De uma nova ascensão do fascismo, como é sugerido pelo brilhante Transit (dir. Christian Petzold)? Do fim apoteótico do mundo, como vemos em No coração da escuridão (dir. Paul Schrader)? É difícil traçar essa delimitação, até porque nossos fascismos e fins de mundo são plurais, diversos. Dos filmes que me tocaram, que apresento nessas listas, faço uma outra aposta: de Temporada (dir. André Novais Oliveira), Lazzaro felice (dir. Alice Rohrwacher), A rota selvagem (dir. Andrew Haigh), Inferninho (dir. Pedro Diógenes), Los silencios (dir. Beatriz Seigner) até os já mencionados Transit e No coração da escuridão, são todos filmes que tratam, cada um a seu modo, da busca por uma outra possibilidade de lugar. Mais uma vez, oriento os leitores a clicarem nos textos que estão linkados ao título dos filmes, alguns deles são meus, a maior parte é de outros críticos ? esta lista, afinal, a oitava publicada pelo Milos Morpha, nunca se pretende definitiva. Não é nunca o fim, mas a continuidade de uma conversa. A crítica e pesquisadora Carol Almeida, em seu texto sobre Temporada, define o filme como “a possibilidade de olhar para o mundo sob outra perspectiva que se dá a partir do contato humano”. Juliana (Grace Passô), a protagonista do filme, sai da cidade de Itaúna, no interior de Minas Gerais, para trabalhar no bairro Amazonas, em Contagem, região metropolitana de Belo Horizonte. Se ela, como afirma Carol, contempla o mundo sob outra perspectiva, é possível dizer que a personagem e o filme encontram um novo mundo nesse gesto de se colocar diante de um lugar com o outro. Temporada se revela um filme sobre uma nova possibilidade de habitação. Habitar, mesmo em adversidade. Eu não poderia conceber um filme mais apropriado para este momento. Filme:
  1. Temporada
  2. Transit
  3. Lazzaro Felice
  4. Inferninho
  5. Los Silencios
  6. Sorry to Bother You
  7. O Outro Lado do Vento
  8. No Coração da Escuridão
  9. A Rota Selvagem
  10. Support the Girls
Em seu segundo longa-metragem, André Novais Oliveira dá continuidade à construção de um universo cinematográfico ficcional a partir do espaço comum do bairro Amazonas, onde também se ambientou o seu Ela volta na quinta (2014), além dos curta-metragens Quintal (2015) e Fantasmas (2010). André Novais Oliveira representa não apenas um avanço temático para o cinema brasileiro ? da produção de um cinema brasileiro negro, que coloca a periferia em cena sem a representar como um estereótipo fetichizado ?, mas também um marco de originalidade formal para o cinema nacional. É difícil saber se o cinema continuará reunindo condições para fazer esse tipo de filme pelos próximos anos, mas vale a pena lutar para que continue. Direção:
  1. André Novais Oliveira (Temporada)
  2. Alice Rohrwacher (Lazzaro Felice)
  3. Christian Petzold (Transit)
  4. Pedro Diogenes e Guto Parente (Inferninho)
  5. Andrew Haigh (A Rota Selvagem)
Quando assisti Temporada, a única forma que encontrei de descrever a atuação de Grace Passô, naquele primeiro momento de surpresa e encanto com o filme, foi dizendo que era como ver Giulietta Masina sendo dirigida por Yasujirô Ozu. A comparação é evidentemente injusta. Isso não porque Masina é uma das mais excepcionais atrizes da história do cinema, mas porque o trabalho criativo de Passô está bem além desse tipo de comparação. Uma dramaturga e atriz com amplo reconhecimento no teatro, Passô compõe Juliana, sua personagem no filme, a partir de uma compreensão muito clara do que aquele filme é e das encenações em que sua personagem está presente. Não precisamos buscar outras grandes atuações e atores do cinema para nos referir ao trabalho de Passô, ele já traz isso em si mesmo. Atriz:
  1. Grace Passô (Temporada)
  2. Olivia Colman (A Favorita)
  3. Rachel Weisz (Desobediência)
  4. Regina Hall (Support the Girls)
  5. Marleyda Soto (Los Silencios)
Em A Rota Selvagem, Charlie Plummer interpreta Charley, um adolescente que trabalha para um treinador de jóqueis no cuidado com o cavalo Pete. Plummer e Andrew Haigh, que dirige o filme, desconstroem a típica história de amizade entre humanos e cavalos em um apelo ecológico e humano a favor de seus dois protagonistas. Mesmo no cinema coming-of-age, com seus personagens mais jovens e narrativas de crescimento, é raro vermos o tipo de encenação do corpo masculino que Plummer e Haigh apresentam nesse filme, quando nos colocam diante da crescente precariedade em que Charley se encontra, e seu corpo não parece ser menos vulnerável que o de Pete. Ator:
  1. Charlie Plummer (A Rota Selvagem)
  2. Yoo Ah-in (Em Chamas)
  3. Lakeith Stanfield (Sorry to Bother You)
  4. John Huston (O Outro Lado do Vento)
  5. Darren Criss (The Assassination of Gianni Versace: American Crime Story)
A atriz Zazie Beetz foi uma das revelações do cinema de grande circuito este ano, tendo interpretado a mutante Domino, personagem das HQs da Marvel adaptada para o filme Deadpool 2. Em seu segundo ano na série Atlanta, Beetz protagoniza dois episódios centrados na sua personagem, Vanessa. Uma mulher negra com afeição pela cultura germânica, professora escolar e mãe solteira, as subjetividades de Vanessa aparecem não só como uma concepção de roteiro, mas também uma composição complexa e arriscada de Beetz, que nunca conduz sua personagem por soluções fáceis. Atriz Coadjuvante:
  1. Zazie Beetz (Atlanta)
  2. Siobhan Finneran (Apostasy)
  3. Regina Williams (Life and Nothing More)
  4. Vanessa Bayer (Love)
  5. Rachel McAdams (Desobediência)
Os personagens de Inferninho são como figuras de seus próprios sonhos, circulando um saloon que é bem menos como os dos faroestes de Henry Fonda e bem mais como aquele visitado por Pépé le Moko, em O Demônio da Argélia (dir. Julien Duvivier, 1937). Como neste, os espaços de Inferninho são imaginados a partir de uma fantasia do periférico (do queer, do nordestino, do latinoamericano). Quando Rafael Martins aparece em cena como um coelho cor de rosa, é possível que a figura do ator nos leve para outro cinema (do qual a referência mais evidente seria David Lynch e seu Império dos Sonhos), mas a atuação de Martins não é uma que, como Lynch, implica no rompimento de uma relação direta com o mundo; é, pelo contrário, a própria reivindicação dessa relação com o mundo, a reivindicação do mundo como habitação, resistência e possibilidade afetiva. Ator Coadjuvante:
  1. Rafael Martins (Inferninho)
  2. Harry Melling (A Balada de Buster Scruggs)
  3. Steven Yeun (Em Chamas)
  4. Hamilton Morris (Doce País)
  5. Otávio Muller (Benzinho)
Se Support the Girls entrega uma das mais originais e urgentes representações de mulheres trabalhadoras, o elenco do filme merece, em virtude disso, boa parte dos créditos. A direção e principalmente o texto de Andrew Bujalski estão sempre no ponto certo, mas muito do que faz a excelência do filme está em como essas atrizes constróem a empatia, o cuidado e amizade que suas personagens nutrem uma pela outra. Elenco:
  1. Support the Girls
  2. Apostasy
  3. Em Chamas
  4. Desobediência
  5. A Favorita
Em Transit, Christian Petzold opta por ambientar seu drama histórico, referente à Segunda Guerra Mundial e às suas ocupações fascistas, na Europa contemporânea. No texto, o filme costura essa opção estética de Petzold ao reconhecimento de uma sensação anacrônica que permeia a contemporaneidade e à descoberta de produções afetivas do contexto do fascismo que estão além de especificidades históricas. Roteiro:
  1. Transit
  2. No Coração da Escuridão
  3. Sorry to Bother You
  4. Los Silencios
  5. Support the Girls
O modo como Los Silencios se organiza não reserva um segredo. Apesar das surpresas que vão aparecendo no decorrer do filme, a montagem de Los Silencios não nos traz pistas, mas nos coloca sempre diante do que está ausente, do que não é mistério, porque é presença. Montagem:
  1. Los Silencios
  2. Inferninho
  3. O Outro Lado do Vento
  4. A Favorita
  5. Em Pedaços
Lazzaro Felice nos devolve às periferias e aos interiors italianos como filmados uma vez por Pier Paolo Pasolini, mas o quadro de Alice Rohrwacher e Hélène Louvart, diretora de fotografia do filme, forma também a sua própria imagem das relações de classe no país. Fotografia:
  1. Lazzaro Felice
  2. Temporada
  3. A Rota Selvagem
  4. Los Silencios
  5. Western
O trabalho mais primoroso de O Outro Lado do Vento, pode-se dizer, é a recuperação de um filme absurdo, estranho e totalmente fora de seu tempo (seja este o tempo em que foi filmado ou o nosso próprio tempo, em que o filme reaparece). Dentre as coisas que estiveram guardadas por décadas neste filme perdido, uma atuação de John Huston, um texto queer de Orson Welles e uma trilha sonora inédita daquele que é, ainda, o melhor compositor da história do cinema, Michel Legrand. Trilha Sonora:
  1. O Outro Lado do Vento
  2. Trama Fantasma
  3. Random Acts of Flyness
  4. O Retorno de Mary Poppins
  5. A Balada de Buster Scruggs
Random Acts of Flyness é uma das produções mais originais de 2018. Levada adiante pelo cineasta, animador e artista contemporâneo Terence Nance, a série é ora um musical fantástico, ora um melodrama de ficção científica, ora um documentário do cinema direto. Sua trilha sonora conta com uma série de canções escrita exclusivamente para as pequenas histórias da série, mas nenhuma delas se encontra tão bem com o tom inventivo da série quanto “Nuncaland”, uma releitura de Peter Pan e um diálogo sobre gênero, masculinidade e raça. Canção:
  1. “Nuncaland” (Random Acts of Flyness)
  2. “Slaughter Race” (Wifi Ralph: Quebrando a Internet)
  3. “I’ll Never Love Again” (Nasce uma Estrela)
Trabalho de Som:
  1. O Outro Lado do Vento
  2. Los Silencios
  3. Guerra Fria
  4. Homem-Aranha no Aranhaverso
  5. O Retorno de Mary Poppins
Série ou minissérie:
  1. Atlanta
  2. The Good Fight
  3. Barry
  4. Random Acts of Flyness
  5. American Crime Story: The Assassination of Gianni Versace
Assisti Lobisomem em uma conferência organizada em torno da discussão sobre cinema e paisagem. Não esperava que, nesse tipo de evento, fosse ser apresentado, como um filme novo, um trabalho que ressignificasse toda a discussão até ali ancorada em outros filmes e outros cinemas. Mas Lobisomem, de Janaína Wagner, fez para mim justamente isso. Aqui temos uma forte, se não de todo nova, consideração às possibilidades da paisagem no cinema. Curta ou média-metragem:
  1. Lobisomem (dir. Janaína Wagner)
  2. Guaxuma (dir. Nara Normande)
  3. A Cidade das Meninas (dir. Paola Favaro)
  4. Raposo (dir. Daniel Nolasco)
  5. No Democracy Here (dir. Liad Hussein Kantorowicz)
O que há de mais fascinante em O Processo é como Maria Augusta Ramos desdobra os procedimentos políticos e burocráticos que culminaram na saída da presidenta Dilma Rousseff como uma encenação entre camaradas. Momentos de excitação nunca ultrapassam essa fronteira dos bons modos mútuos, formando assim uma curiosa encenação de uma Brasília que se naufragava com excesso de polidez. Documentário:
  1. O Processo (dir. Maria Augusta Ramos)
  2. Shirkers (dir. Sandi Tan)
  3. Kinshasa Makambo (dir. Dieudo Hamadi)
  4. Futebol Infinito (dir. Corneliu Porumboiu)
  5. A Cidade das Meninas (dir. Paola Favaro)
Animação:
  1. Homem-Aranha no Aranhaverso
  2. Guaxuma
  3. Wi-Fi Ralph: Quebrando a Internet
  4. A Ganha-Pão
  5. O Retorno de Mary Poppins
Cenografia:
  1. Random Acts of Flyness
  2. Apostasy
  3. O Retorno de Mary Poppins
  4. Trama Fantasma
  5. Benzinho
Figurino e Maquiagem:
  1. Los Silencios
  2. Inferninho
  3. Trama Fantasma
  4. A Favorita
  5. Transit
Design de Produção:
  1. Inferninho
  2. O Outro Lado do Vento
  3. Lazzaro Felice
  4. Homem-Aranha no Aranhaverso
  5. Sorry to Bother You
Videoclipe:
  1. This is America (Childish Gambino, dirigido por Hiro Murai)
  2. Barbie Tingz (Nicki Minaj, dirigido por Giovanni Bianco e Nicki Minaj)
  3. Bloom (Troye Sivan, dirigido por Bardia Zeinali)
Menção honrosa à participação da atriz Maria José (Zezé) Novais Oliveira no filme Temporada, seu terceiro trabalho de atuação nos filmes de seu filho, André Novais Oliveira. Em Ela volta na quinta (2014), Zezé entrega uma das atuações mais significativas do cinema brasileiro contemporâneo: não só a representação de uma mulher negra, idosa, moradora do bairro de Contagem, mas uma criação de personagem e performance de excelência. Em outras palavras, celebramos Zezé por seu trabalho criativo, e não só representativo. A atriz faleceu em maio de 2018, e sua presença em Temporada não deixa dúvidas da falta que ela já faz ao cinema.   Anos anteriores: Apanhado do Cinema 2017 Apanhado do Cinema 2016 Apanhado do Cinema 2015 Apanhado do Cinema 2014 Apanhado do Cinema 2013 Apanhado do Cinema 2012 Apanhado do Cinema 2011