São estranhas fábulas sobre pressão social e opressão e disfunções familiares. Problemas tão antigos quanto a própria civilização. O “mal estar da cultura”, como certa fez definiu Freud: toda uma civilização erguida sobre a dor e a neurose dos indivíduos.
Porém, a série taiwanesa
Filhos do Caos (
On Children, 2018-), disponível no Netflix, mostra como esses mal estar da civilização pode ser aprimorado e potencializado com as novas tecnologias. E com pitadas de realismo fantástico combinado com a cultura meritocrática da concorrência e vitória a qualquer custo.
Marca da atual cultura corporativa globalizada que contamina todas as esferas sociais, da familiar a escolar. Mas que nos países asiáticos parece ganhar proporções ainda mais cruéis e autoritárias – a combinação dos ancestrais valores de honra e distinção familiar com a moderna ideologia meritocrática do capitalismo.
Baseada no aclamado livro homônimo de Xiao-Le Wu, muitos comparam
Filhos do Caos como uma versão asiática da série britânica
Black Mirror – futuros distópicos a partir dos perversos desdobramentos dos dispositivos tecnológicos que já fazem partem da rotina atual.
Porém, em
Filhos do Caos a presença da tecnologia é discreta (mas decisiva), sem os dispositivos mirabolantes que
Black Mirror nos mostra. Na verdade, a série taiwanesa lembra a tendência atual dos filmes independentes de ficção científica: os chamados “psicodramas alt. sci-fi” – narrativas que colocam temas da ficção científica ou do fantástico apenas como pano de fundo ou pretexto para explorar questões existenciais e dos relacionamentos humanos.
Caos e Ordem
O título em português para a série
On Children é equivocado: sim, os episódios tratam de filhos adolescentes às voltas com a tirânica necessidade de tirar as melhores notas na escola, para poderem ingressar nas melhores instituições de ensino médio que garantirão a entrada nas mais prestigiosas universidades, garantindo um lugar na elite abastada e consumista.
Porém não há propriamente “caos”, mas uma ordem opressiva que combina sentimento de culpa familiar (a culpa jogada nas costas dos filhos pelos sacrifícios que os pais têm que fazer para dar a melhor educação), o pesadelo adolescente por reconhecimento e aceitação junto com os valores do mérito e da competição.
Controle remoto, câmeras de vigilância, celulares, gadgets neurocientíficos se combinam com elementos do fantástico como um demônio incorporado em um pavão que faz perigosas negociações com estudantes incautos ou realidades paralelas que atormentam ainda mais a vida de estudantes.
Em
Filhos do Caos a tecnologia não cria propriamente mundos distopicos. A distopia já é pré-existente: a aliança entre a opressão familiar, a disciplina escolar e a concorrência meritocrática do mundo corporativo. Os gadgets tecnológicos entram apenas como ferramentas para azeitar esses mecanismos repressivos. Mecanismos para reprimir o último grito do indivíduo contra a vida adulta que o aguarda no futuro. O grito da adolescência: a inadequação, o estranhamento, a alienação. E todas as formas para terapeutizar, curar para finalmente enquadrar o jovem que deve ser treinado para a vitória em nome da honra familiar.
Filhos do Caos nos mostra como as modernas tecnologias são apenas novas ferramentas que veem para atualizar os antigos dispositivos disciplinares, como a religião, a ideologia e a propaganda.
A Série
A atual primeira temporada é dividida em cinco episódios enormes, praticamente um longa metragem de 1h40 em cada um. Nos EUA cada episódio foi dividido em duas partes, resultando num total de dez episódios para essa temporada.
Em cada episódio sempre temos como protagonistas, adolescentes prisioneiros em relações familiares doentias onde os pais despejam nas costas dos filhos suas frustrações por se sacrificarem tanto para que os filhos entrem nas melhores escolas particulares. Pais de classe média que têm uma única obsessão: que os filhos honrem o nome da família vencendo a competição pelas melhores notas nas maiores universidades.
Os episódio incluem tanto clássicos temas ao estilo
Black Mirror (máquinas neurocientíficas, telas, câmeras de vigilância e dispositivos de controle do tempo-espaço) a elementos do realismo fantástico: um jovem desliza em uma dimensão paralela depois que traz para casa uma caixa de gatinhos para cuidar (“O Gato e o Menino”); uma mãe que utiliza uma tecnologia experimental para explorar a mente de sua filha morta, procurando entender os motivos que a levaram ao suicídio (“O Último Dia de Molly”); uma adolescente de uma família de classe média baixa que conseguiu entrar em uma cara escola privada faz acordos com um demônio incorporado em um pavão falante (“O Pavão”); uma mãe que toma medidas drásticas quando as notas da sua filha caem, ameaçando o status da família na comunidade (“TDAH é Necessário”).
O primeiro episódio, “O Controle Remoto da Mamãe”, lembra um mix de
O Feitiço do Tempo (
The Groundhog Day) com
Click de Adam Sandler: quando a mãe Shu-Li começa a perder o controle do filho adolescente Pei-Wei (juntos com os amigos, que fazer parte da “viagem de formatura”, ao invés de ficar em casa estudando para conseguir entrar numa prestigiosa escola de ensino médio), ela encontra uma empresa que fabrica uma espécie de controle remoto que permite que “rebobine” a vida do filho, para que aprende a fazer as coisas direito.
“Ser obediente à mamãe”, “alcançar as melhores notas” e “entrar na melhor Universidade para ganhar muito dinheiro no futuro” são os mantras que Pei-Wei deve repetir e aplicar. Se não, a mãe aciona o controle e o mesmo dia é repetido, até que a rebeldia do filho seja vencida.
Mas a mãe encontra outra aplicação, digamos assim, “pedagógica” para o controle remoto: depois que Shu-Li descobre que Pei-Wei falsificou o boletim para poder viajar, ela obriga-o a frequentar um cursinho preparatório, repetindo o primeiro dia de aula dez vezes para que o filho mentalize a matéria ensinada – ela acredita que isso trará vantagem sobre os demais concorrentes.
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