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OPINIÃO
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Um dos elementos do crescimento das ações nazifacistas recentes no Brasil é o ataque aos templos das religiões de matriz africana. Estes ataques são fundamentados em práticas de intolerância religiosa, em geral por grupos que se autoidentificam como “cristãos” e que estariam atacando “seitas demoníacas”. Porém, são mais que práticas de intolerância religiosa. São sim práticas de racismo religioso e que se inserem no mecanismo mais perverso do racismo estrutural brasileiro que é o genocídio da população negra. O genocídio é tanto o extermínio físico como o simbólico do povo afrodescendente brasileiro. Os ataques e as tentativas de intimidação das práticas sagradas de matriz africana são formas de apagar a presença negra, majoritária, no Brasil.
No início de 2001, foi realizado um extenso levantamento das casas e templos de religiões de matriz africana por meio de um convênio entre a Unegro/SP (União de Negros pela Igualdade de S. Paulo), entidade do movimento negro paulista, e a Fundação Cultural Palmares, que financiou o estudo. A Unegro/SP e a equipe montada por ela abandonou este projeto, sem explicações, mesmo recebendo os recursos. Os dados preliminares, porém, são bem ilustrativos do que significa este racismo religioso.
Foram entrevistadas 957 lideranças de casas de religiões de matriz africana em vários estados brasileiros. Em São Paulo, onde os dados estão mais consolidados, há uma predominância de casas de candomblé e de umbanda. Do total mapeado, 56,94% são casas de candomblé, 32,32% são casas de umbanda e 8,45% se denominaram como um “”híbrido”, candomblé/umbanda. No caso das casas de candomblé, a esmagadora maioria (61,35%) pertence a nação ketu e 23,63% angola. No caso das casas de umbanda, 92,58% se denominam como “umbanda de tambor” e 6,45% “umbanda sem tambor”.
Outros dados interessantes deste levantamento: mais de 80% dos imóveis onde se localizam estes templos são próprios – 81,5% no caso do candomblé; 84,51% no caso de umbanda- mas pouco mais de um terço deles necessita de reforma, restauro ou reparação, na maioria as casas de candomblé (36,98%) contra 34,57% das casas de candomblé/umbanda e 30,60% das casas de umbanda. E esta situação está diretamente ligada ao perfil dos sacerdotes: há uma presença negra maior entre os sacerdotes/líderes do candomblé que umbanda: 59,89% dos sacerdotes de candomblé se autoidentificam como negros (pretos ou pardos); contra 48,96% da umbanda e 48,14% da umbanda/candomblé. Para efeitos de comparação, a população negra em São Paulo é de 32% segundo os dados oficiais.
O que se observa no cruzamento destes dados é que as casas de religiões de matriz africana que tem mais negros no comando são as que mais sofrem com a precariedade de instalações; que estas religiões são dirigidas por pessoas negras e que os ataques sofridos por elas está diretamente ligado a estas situações do racismo estrutural: ao contrário da maioria dos templos suntuosos das religiões cristãs, são sedes simples, em geral a moradia do próprio sacerdote, em bairros periféricos e necessitando de reformas e restauros. E a vinculação destas condições ao perfil étnicorracial é demonstrado com o dado de que a maioria dos sacerdotes são negros. Por isto, os ataques a estas religiões não são meramente práticas de intolerância religiosa, embora isto também esteja presente nestas ações. São também ações racistas, pois atacam sedes de religiões dirigidas por pessoas negras, da periferia, na mesma sintonia que forças policiais assassinam jovens negros nos bairros periféricos; que os poderes públicos fazem ao sucatear as políticas públicas voltadas aos mais necessitados; que o aumento do feminicídio entre mulheres negras, entre outros.
A articulação da direita contemporânea
Em um artigo da coletânea “A luta contra o racismo no Brasil” (Ed. Forum, 2017), defendi a ideia de que a direita contemporânea brasileira se articula em três narrativas ideológicas. A primeira é a narrativa da meritocracia, que tem como principal objetivo legitimar as desigualdades sociais profundas no país e interditar a discussão sobre políticas de atendimento e de ação afirmativa – a ideia de quem tem mérito, consegue. A segunda, é a narrativa da securitização, que se expressa pela defesa da maior repressão policial, da tese de que “bandido bom é bandido morto” e que o maior problema do país é a “criminalidade”. E a terceira, é a narrativa do salvacionismo, expressas pelo fundamentalismo religioso que as pessoas serão salvas se adequarem-se a uma determinada perspectiva religiosa (em geral, a neopentecostal), dividindo as pessoas entre “boas” e “más”.
O que temos aí é uma divisão da sociedade entre bons e maus, entre cidadãos de bem e cidadãos do mal, entre pessoas competentes e incompetentes. É a expressão máxima do moralismo como o único elemento explicador dos problemas sociais. Não é coincidência que muitos dos protagonistas da operação de perseguição política denominada de “Lava-Jato” em Curitiba, se professem como evangélicos.
Associar as religiões de matriz africana a práticas satânicas implica em situar elementos da cultura afrobrasileira no campo do “mal”. E as pessoas que a praticam como “más”. Assim, sem ter os direitos de cidadania assegurados – mesmo o direito previsto na Constituição de professarem as suas crenças religiosas. E, portanto, da mesma forma que jovens negros, mulheres negras, trabalhadores negros, serem excluídos e poderem ser agredidos. Esta é a raiz destas agressões.
Por isto, o combate ao racismo religioso é um elemento de contraposição a estas narrativas que sustentam a ideologia da direita contemporânea no Brasil. Não se trata de uma briga religiosa e sim de mais uma ação de cunho nazifacista.